15.6.11

anedota do misógino

-crença-

acredita que o temor diante coxas, virilhas e pés femininos,
não é nada mais que - de forma retumbante - racionalidade.

-este número está fora de área e não possui caixa postal-

Luciana insiste que ele atenda o telefone, antes que anoiteça.
Suando frio, prefere o velho golpe do túnel - e com sede,
escolhe o café de uma livraria de shopping , para tomar uma Sprite.

Ao menos, Luciana e suas amigas, lá, não abririam a boca.

-constatação de homem de meia idade bem sucedido-

Nunca mais foi em botecos.

-casa grande e senzala-

quando sai do shopping center, oferece olhar com lascívia
apenas a mulheres negras, e assim acredita
que faz um favor ao pavilhão nacional.

no fundo, ou no raso, está imbuido de certeza que esse caminho é fácil.

-boa noite, pai!-

mas quem deu boa noite foi a mãe.

-revista é sempre mais agradável que livro-

Chico Buarque de Holanda não passa de uma bicha
que canta canções com [eu lírico feminino].

aliás, a coleção deste compositor - reeditada pela editora Abril - será
o único produto da empresa que não comprará.

-fim do dia, microsoft outlook (1) mensagens não lidas-

from: Luciana
Subject: Adeus

a culpa sempre será dela.

3.6.11

15 horas

15 horas – basta um aceno
de café em xícara duralex.

assinar o ponto,
guardar entre aspas
aforismos de sala de aula.

sacudir esqueleto
em ônibus, transpondo
ponto a ponto a zona sul a leste.

ter fim.

forjar sono em cadeira,
e esquecer que cara tem:
- o crepúsculo.


30.5.11

21.5.11

lembra?

havia felicidade naquela velha porta
que dava pra rua em dias de verão.

quando descobríamos que aquela 
triste e bela canção - feita a mão,
significava algo como clamor.

havia, como uma harpa dedilhada
que procura sentido em conjunto.
um valor no cheiro de guardado
da blusa de lã, quando descoberta,

a cada inverno: guardada em caixas no alto do armário.

sim, havia graça em ver seus pés
de ponta - calçados de meias, a
empinar-se, erguer a blusa e revelar
a brancura da parte de trás da suas
coxas, 
         e a nuca exposta
                                   pelos cabelos presos
                                                                  e os poucos fios
a fazer frio
                e a sorrir de canto
                                            quanto você jurava
                                                                         que gostava.

e era fiapo de vida
restolho de significância
alternando estação.

by Daniel Russell Photography

13.5.11

Cachaça

pinga-teto de engenho,
arde as costas de quem
leva arreio.
 
É máquina de boi, de gente
rodamundo tritura cana em sonho
 
faz sono de poeta, meia garrafa
alegria de bando, sorriso encantado
 
é doce gosto que queima,
projeta a careta, prazer de quem ama
 
leva loucura a cama, jus a carne que tira
gosto, é peso que se segue ao
peso que se solta a cada gole.
 
É brinde de eternidade.



Esta poesia faz parte da série "Letramar". para ler as outras acesse a seção download. Lá é possível baixar as outras.

7.5.11

long beach 1992 a.c

ao Bradley Nowell (in memorian)

quando a estiagem atingia o verão
e o céu azul secava as piscinas
os cabelos parafinados reluziam
e o violão entoava canções
que você aprendeu com seu pai

long beach e suas ruas de
carros populares e calçadas
ocupadas por transeuntes
belas moças, hipsters, junkies
e rivalidades entre bairros

a noite as festas baratas, lotadas
de aventureiros insanos
em busca de verdades eternas
bebendo até o dia raiar
pra buscar mais ondas em Venice
pela manhã.

corria o ano de 1992, era cedo
lou dog roçando o assoalho da
velha van, em busca de diversão
enquanto tocava uma fita k7
dos beach boys.

corpos inertes na máquina
que repousava as rodas
no asfalto quente a se deslocar
em mais um destino na costa oeste

o horizonte era sol
e sua figuração a plenitude
do pouco saber - ou querer.

Foto: http://herot.typepad.com

3.5.11

Eco de Maio


O Eco - Performances Poéticas de maio vem garantir que a primeira semana do mês tenha gosto de poesia.
E uma das missões dessa edição é desmentir um ditado popular. Santo de casa não faz milagre? Faz sim. E para provar isso estarão no palco do Mezcla Anelise Freitas, que vem de Lima Duarte e desembarca em JF trazendo na bagagem seus versos desavergonhadamente verdadeiros e voluptuosos, e Anderson Pires, um dos fundadores do Eco, que retorna ao elenco para disparar sua afiada poesia rock 'n roll, pronta para entorpecer os desavisados.

O Eco traz também uma novidade nessa edição: um set temático especial em homenagem à existência e à essência do poeta cinco estrelas da nossa história, Manuel Bandeira. A obra do escritor pernambucano estará presente na edição de maio do Eco, portanto prepare-se para ver, ler, ouvir e sentir grandes clássicos da poesia brasileira.

Para completar a noite, a galera pode abrir o berreiro com suas poesias no microfone aberto. Lembrando que todo o Eco é regado ao fino som de Mister Pedro Paiva com seus vinis.

É no dia 05 de maio, quinta-feira, às 20 horas (pontuais), no Mezcla (
Rua Benjamin Constant, 720. Centro. Juiz de Fora, MG)
 
E a entrada é franca.
 
Espalhe e apareça.

27.4.11

Forra - audio da leitura da poesia

Essa poesia já esteve aqui no blog (08/02/2011). Apresento agora um audio (precário) da leitura.

  Forra by Tiago Rattes

22.4.11

dançar estante

a estante, obstante,
guardava mais que
a poeira dos livros.

restava a ela, alva,
a picardia dos
dicionários e léxicos.

o sol pujante de
semântica, adentrava
douto, a janela

a fazer, das
amareladas marcas
deixadas, seminário
de gramática.

13.4.11

Reconhecimento - I

as ruas de terra
ou asfalto desgas-
tado, ou as guias
arrancadas ou as
casas sem reboco
ou os postes apa-
gados ou as vidas
entrincheiradas,
ou à espreita da
passagem ou, o
cerne da batalha.

ou a perfeita resign-
ação da paisagem.

nariz empinado é
antônimo de cabeça
erguida - orgulho.

da laje, olhos de
esperança. enchem(se)
retinas. íris.

na cadeira a criança
colore a vida.

e as luzes acesas
fazem noite-espetáculo.

11.4.11

Eco na web

O Eco Performances Poéticas agora tem site:

http://ecopoetico.blogspot.com/

5.4.11

O primeiro Eco de 2011


Poesia, música, diversão, arte, conversas, discos de vinil, microfone aberto, cervejas, encontros e desencontros poéticos: o Eco está de volta, entrando em seu quarto ano de agitação da cena poética de Juiz de Fora.

O foco continua sendo a produção e divulgação da poesia autoral. Mas a composição do elenco desse primeiro Eco de 2011 destaca também o intercâmbio constante e necessário entre a literatura e outras artes:  no dia 07 de abril, quinta-feira, a partir das 20 horas,  estarão no palco do Mezcla o poeta e músico Knorr, a escritora e musicista Juliana Stanzani e a atriz e poeta Raphaela Ramos.
 
Depois das leituras do elenco de convidados, rola o tão amado e esperado microfone aberto. E a já clássica trilha sonora por conta das pickups de Pedro Paiva.  Não se esqueça que a entrada é franca e que seremos pontuais. Convide seus amigos, ajude a divulgar o Eco e - o mais importante - apareça por lá!

(texto de Laura Assis)

29.3.11

Pioneiros - I


A esverdejante folha aponta no  horizonte, e a gotícula faz prisma de cores – é o sol que volta – tangente no globo ocular, mas nem assim desvio o olhar. Pescoço dolorido em cavalgada mira a folha, reta, sempre, obstinado, em busca do destino incerto que me acolhe, a gota escorre – feito lágrima ou suor na testa – galopante em riba de arreio, cravo forte espora em bucho de cavalo doido para chegar antes que a lágrima escorra. Eu sempre disse a Maria Rosa que de cavalo não tenho pena – mas recompenso a água e capim, de preferência daqueles que nascem no Serro ou na Canastra, que dão de beber em teta de vaca leite gordo, nutre filho de senhor, quando roubado alivia fome de Zé-ninguém como eu. E já corriam os oitocentos. Sempre que assim penso, faço reverência ao consagrado Imperador, Às vezes puxo forte o arreio para que Sem-Mortes, meu cavalo, empine, e eu grite, “Viva o Brasil” com a garrucha velha que me acompanha em coldre velho, que ganhei nas andanças por Diamantina, de Maria Rosa. Era sempre oração do dia, para que não usasse a garrucha velha. “Garrucha falha, pólvora molha, mulher de Deus, mas na bainha trago faca de ponta, e essa a preta velha de Vila Rica, na encosta da serra, em casebre abandonado e casa mal alumiada garantiu que nunca falta à mão”. Maria Rosa se benzia e ordenava com as mãos espalhando reza que não me misturasse com as lendas dos pretos que segundo ela, bebiam cachaça e fumavam rolo em nome de santos de mau agouro.
            - Corre, Sem-Morte, pangaré de araque, fél-da-zunha, que a gota vai cair e eu quero chegar!
            De antemão antecipo ao senhor que não tinha gota, nem folha esverdejante. É prosa de peão que de vez em sempre assunta com a imaginação. Mas havia a sombra do sol atrasado que não bastando tardar, vinha de indelicadeza com moleira de andante, gente perdida, homem sem dono, filho sem pai, troço de treva, como eu. Arreia de pé, enrosca galho, tapa na fuça de Sem-Morte. Bico no cantil. Suadeira na lomba, peso da mochila de couro. Bezerro que eu mesmo matei.
            A beiragem do Paraybuna era feia de dar dó. Rio lamacento, água escura, sinuoso que nem lombo de bicho gordo, sem roçado, mas me benzi agardecendo em palavra de improviso ao Senhor do céu – reza de peão não tem bordado – faz gesto brusco e instrui palavra de boca meio fechado. Se vossa senhoria me entende, aprendi a rezar em lombo de mula, as letras nunca juntei, e na igreja, seu vigário balofo nunca permitiu que eu entrasse, desde que roubei moeda na caixinha da santa. Mas quando há fome, não há pecado, e se insiste o padre-santo, eu me entendo com o diabo, nem que seja em briga de faca.

            E lá adiante aparece um morto de fome como eu. Olhos esbugalhados, cara amarela, roupa maltrapilha, daria dó – se o estrupiado não empunhasse um facão de tucum de dar gosto de tão novinho e um rosário de madre-pérola, que já intuí em minha mente brejeira ser pilhado de homem de posse.
            - Vai pr’onde, homem de Deus?
            - Não vou. Já cheguei.
            O estropiado riu de canto feito tinhoso. O senhor saiba, que só não abri um bucho em homenagem aos urubus por que tinha tempo que me decidi por ser homem de paz nessas Gerais.
            - Veio de onde, condenado?
            - Vim das bandas da capital. Mas ouro não há mais, não sou homem de perder viagem, apeio aqui e faço brotar desse chão o que preciso pra viver.
            O maldito dessa vez ria era de boca inteira, e eu rogava a Santa Virgem que me desse paciência e tranqüilidade.
            - Terra não devia ter dono disse o Santíssimo e quem sou eu pra dizer estória de contrário. Fica em paz e na sorte, por que Deus aqui nunca esteve, e o Diabo se veio já pulou fora.
            E foi arrastando esqueleto velho de volta ao pobre vilarejo.
            A notícia é que a fazenda do outro lado é de homem de sobrenome graúdo, e presença gorda nas políticas dessas bandas. O que o homem planta com fé, nem coronel, nem senhor de escravo arranca. Se planto os pés na margem desse Paraybuna lamaceiro ninguém me tira. Cavo e escavo solidão até as ferramentas que Deus deu se transformarem em toco de pau, e arbitrariedade, meu senhor, eu não tolero. Puxo garrucha, quando pólvora molhar a faca de ponta não falha. E se o plantel de escravos ganhar liberdade como querem os doutores da capital, faço voto e presença de invasão nas terras desse sei-lá-quem com sobrenome. E tenho dito. É palavra de peão.

28.3.11

Eco Performances Poéticas no Grito Rock

Estivemos ontem no Cultural Bar, participando da primeira edição do festival internacional Grito Rock (http://gritorock.com.br/).

Esse festival corre toda a América Latina, reunindo bandas do circuito independente. Em Juiz de Fora ele foi promovido pelo Coletivo Sem Paredes (http://coletivosemparedes.wordpress.com/) que tem feito um belo trabalho na cidade em prol da arte e da cultura. Eu e Luiz Fernando Priamo fizemos leituras diversas enquanto nosso amestro Pedro Paiva atacava nos discos, propiciando uma bela trilha sonora. Desde já, agradecemos a todos e todas que prestigiaram, bem como toda galera da casa, que deu uma força, Juliana, Helô, e a Virgínia do Sem Paredes que fez questão da nossa participação no evento.

O registro é da fotografa Thais Thomaz. Ficou incrível, né? Conheça o trabalho dela: http://www.thaisthomaz.com/ 

E caso quiser reproduzir essas fotos, não esqueça de dar o crédito a ela.










19.3.11

Da proibição de festas e outras formas de criminalizar a juventude



Mais uma vez assistimos um velho filme em Juiz de Fora. A prefeitura, sob o argumento de um parecer judicial, resolve impedir a realização de uma festa Rave neste sábado ma cidade.

Antes de qualquer coisa, deixo claro que conheço esse tipo de festa de perto, apesar de não ser um frequentador delas.

Chamo de velho filme por que pouco tempo atrás vimos a proibição de bailes funk no centro da cidade justificadas pela possível violência que as festas poderiam trazer. As raves seriam antros de drogas, e os bailes de violência.

Muitas proibições aconteceram, muita água passou por baixo da ponte e nada mudou. É óbvio que essas medidas nunca surtiram efeito.

A prefeitura de Juiz de Fora foi rápída no gatilho para proibir a festa. Mas tem sido bem lenta na promoção de políticas públicas que possam ajudar na conscientização e no combate às drogas. Estou errado? Alguém conhece um projeto efetivo na cidade com esse tema? Alguma parceria entre justiça e Ministério Público? Se houver, ficarei feliz em ser corrigido.

O que acontece é que infelizmente existe um caminho, com o perdão da palavra, preguiçoso, sempre utilizado. è mais fácil proibir do que compreender o que e fato representam essas festas. É muito mais cômodo a repressão do que a fiscalização e a proteção aos jovens que na sua maioria esmagadora, vão nessas festas para se divertir. Ou será que já esquecemos que lazer é um direito fundamental da juventude?

No ano passado, pessoas foram presas portando drogas na estrada que dava acesso a festa. parabéns a PM, que fez seu trabalho. É isso que esperamos da polícia. Porém isso não pode servir como justificativa para a proibição da festa. Quantas vezes, torcedores de futebol não são detidos antes de ir ao estádio com armas e similares? Vamos proibir o futebol por causa disso? Não existe o consumo de drogas em outros espaços?

Lamento crer que isso ocorre, fundamentalmente pelo fato de que o poder público não conhece a juventude e seus anseios. E como a juventude muitas vezes não representa um grupo forte e organizado de poder, acaba se tornando vítima de arbitrariedades.

Esperamos que haja mobilização para tirar esse debate dessas trevas, de preconceito e desinformação, para que a juventude possa ter seu direito pleno de se divertir, nos espaços que escolhe.

12.3.11

De onde eu sou

São João da Mata - vista aérea

De onde eu sou, eu sei, apesar de ter vindo de muitos lugares. parece a sina de versador com a sacola nas costas. papel, caneta, coração na ponta do lápis.

cresci na barriga de uma mãe amorosa no sul das Minas dos Matos Gerais. A cidadezinha de São João da Mata, terra de índios Abatingueras, em constante litígio com bandeirantes paulistas, friagem de doer os ossos nas noites de inverno. Mas frio nenhum era páreo pras portas abertas, salas cheias de gente, onde o limite entre vizinhança e família nunca se fez certo, graças a boa hospitalidade mineira. Casa cheia, cozinha esquentando o resto do lar. Panelas cantando, tábuas batucando sob facas que cortam legumes e verduras, água de bica que cai na panela, ferve, cheira, apimenta, prova, canta, ri, chora, relembra. O mundo é cozinha boa.

Mas São João da Mata não tinha hospital. Vai pai, vai mãe, corre pr'o moleque nascer em Pouso Alegre, é logo ali. Passa avoando por Machado, cuidado com o radar. Balança as estrturas do Fiat147 zero bala, seu Oswaldo, que o moleque quer sair pra viver a vida. Nasce, e volta. Por que ele quer mesmo é ser sãojoanense, acordar e sentir cheiro de milho cozido, cural,paçoca, leitoa. Ouvir o Seu melado, velho sábio entoar canções ao violão, logo ali na sala. Corre, minha gente, que a família já pegou a estrada pra ver o molecote que nasceu.

- Cadê Anacharsis, Vadico?
-Ah, Dona Lezy, ele foi almoçar na casa do vizinho, mas quando estava voltando o folião convidou pra tomar uma pinga na parada da folia e ele topou. Abriu o apetite e o prefeito chamou pra almoçar na casa dele. Convite do prefeito, não se recusa.

Azar da leitoa que foi pra panela. E Vovô Rattes fazia sucesso nas ruas da pequena cidade, de casa em casa, não negava convite.

Tio Iriê quando chegou mal entrou em casa. Pai interpelou e foram afogar saudade em copo de gelada. Quatro horas depois os amigos retornam a residência, embebidos em felicidade. Eis que o Iriê saca da mala um jogo de vareta e inicia o desafio.

-O que é esse barulho? é chuva batendo na janela, Waninha?
-Nada, querido. É que essa hora a besourada sai da mata e bate na janela, preocupa não.

Zé Guto, meu padrinho, tio mais novo sente em São João da Mata sua grande liberdade. Com 18 anos, acompanhado do primo Wilsomar, que Deus o tenha, vai curtir os forrós e cortejar as mocinhas, voltar de madruga em estrada de terra, escura, com luz-pequena de pirilampo, quando muito lua cheia abençoada.

- Ô Wilsomar, você viu que eu peguei na mão daquela menina?
-Pois é, elas nem queriam que a gente fosse embora...

Um dia voltamos pra Juiz de Fora, onde pai e mãe viveram desde cedo. Eu nem era dono de mim. Mas tenho certeza que já tinha decidido que era juizforano do miolo, até o talo.

De São João da Mata ficaram as lembranças da casa ampla, da samambaia, da cozinha, das brincadeiras da sala, dos carinhos da ajudante Sandra, que cuidava como se eu fosse filho, do burburinho da rua onde crianças brincavam, da Folia de Reis que entrava em casa e fazia oração. Da Congada que passava e dos carreiros, que davam som a rua, com seus carros de boi.

Mas eu já havia decidido que era súdito da Princesa de Minas, Vam'bora que é hora.

Na Princesa de Minas, Juiz de Fora, Santo Antonio do Paraybuna, Manchester Mineira, era vida nova, vida velha, outros santos, outras festas.

Entra no carro com o Vô Rattes, vai no açougue. Hoje tem churrasco. Final de semana é dia de ir pra cidade alta. Brincar com primos, brincar de serra. Reviver o frio. Brincar com os primos e primas, pipa-papagio, casa de árvore, chão de terra.

E por ocasião de trabalho da Dona Wânia o molecote vai viver boa parte de suas horas do dia no Mariano procópio, brejeando o Paraibuna, margeando córrego, estourando dedo em rua calçada de pedra. Estudando em escolinha, ali mesmo. O molecote se sagra moleque de verdade. Da roça ao subúrbio, do matão à várzea. Cruza a avenida Rio Branco, vai almoçar na Vó Penha todo dia, ser cuidado pelas tias, e no final do dia ganhar beijo e abraço de mãe.

-Mãe, posso brincar no terreiro?
-Mas meu filho, eu sou sua vó, a sua mãe é a Wânia.
-Eu sei, vó. Mas é por que eu tenho duas mães.

E assim foi, e sempre será.

Eu vim de um monte de lugares. Pude até escolher de onde eu vim. Cabe a mim viver e morrer de amor por esses pedaços de mim, espalhados pela geografia intensa das Minas Gerais.

19.2.11

Toque de ira

frívola falsa-fala
em fogo é fardo é
foda.

rasga-corpo, em
seda, cama.
perna em cima,
braço embaixo;

[não respeita
nem velório]

toca en(m)torno
faz transtorno
rima com lábio-bo
ca]

resplandece-mão
que arranha, eno-
brece pés que pi-
sam em minha
verve.

17.2.11

Miguel e Luiza - IV


A NÉVOA tomava conta da casa. A luz era azulada, inconstante e era impossível discernir se era dia ou noite. Aparentava um estado inebriado e sentia como se fossem cinco da manhã, justamente naquela hora quando o dia ameaça raiar e você não consegue mais segurar o sono. Ainda estava bêbado, pensou com toda certeza. Caminhou pelo corredor e se deparou com uma estranha imagem: numa pequena poltrona, sentado de pernas cruzadas estava seu pai. Ele o observava com um ar de superioridade extremamente irritante. Tinha os cabelos esvoaçados, óculos de aro grosso e pretos que repousavam sobre o grande nariz. Levantou lentamente os olhos sem sequer mover a cabeça com tom de cumplicidade e repousando as mãos por sobre os joelhos suspirou.

- Você não aprende, hein, garoto? A voz roufenha irritava Miguel.

- O que você está fazendo aqui?

- Vigiando você, garoto.

- Eu já não te disse que não quero saber de você por aqui?

O velho sorriu e abaixou a cabeça. As costas pareciam protuberantes e pouco a pouco se tornaram trêmulas. Ele parecia estar rindo e em crescente revelava seu sentimento. As risadas tornaram-se gargalhadas cada vez mais altas e atordoantes. Miguel queria tapar os ouvido, mas estava fraco demais. As mãos não chegavam até lá. Sentia-se aflito e as pernas não respondiam mais. Não conseguia sair do lugar.

Até que acordou.

Murmurou timidamente pra si próprio:

- Puta que pariu de pesadelo.

Tinha as costas molhados e sentiu que estavam coladas no sofá de curvim branco de sua sala, pensou em levantar, mas foi persuadido pelas dores no corpo e pela preguiça. Já que restavam algumas horas até que João fosse lhe buscar preferiu permanecer onde estava, sentindo palpitar o coração assustado pelo pesadelo. “Ah, velho filho da puta, nem assim me deixa em paz”, praguejou em pensamento. Sentiu a aflição percorrer seu corpo e arrepiar os cabelos dos braços, suou frio novamente, e os olhos que ardiam pareciam enxergar turvo novamente. “É hora do santo remédio” pensou consigo.

Foi até a cozinha lamentando a existência. Abriu uma pequena caixa ao lado do purificador de água, e procurou entre a caixa de curativos, as Novalginas vencidas, os remédios Homeopáticos abandonados e entre as caixinhas amigas de Valium, seu Apraz.

- Aí está você, meu camaradinha! Deixa eu te engolir para o mundo não me engolir.

Miguel achava graça das infrutíferas tentativas de tratar sua ansiedade crônica. Já havia tentado de tudo: ioga, tantra, musicoterapia, terapia de grupo, arranjar um emprego decente, casar-se. Mas tudo era em vão. O bom e velho Apraz era seu melhor amigo. Remediar-se era um gesto mecânico. Valia mais pelo copo d’água do que pela droga. Sentia-se cínico, provocador, e isso acentuava ainda mais sua ansiedade. Era de fazer doer as costas e suar a nuca. Mas Miguel desaprendera viver sem isso. Encarava sua medicação com a frivolidade e resignação de quem fazia mais uma refeição.

Eram quatro da tarde e sentiu fome. Seu estomago parecia estar em descompasso com o intestino. Um pedia comida e o outro se queixava dos excessos da noite anterior. O que fazer? Viver era um constante exercício de contradizer o corpo, dizer não quando ele pede que diga sim. Fingir que não ouviu um clamor. Poderia abrir a geladeira e tentar fazer uma salada, beber um suco. Slow Food. Mas também podia ir até a padaria e servir-se de gramas e gramas de compostos de gordura trans, carboidratos, proteína animal. O cérebro agradece quando o estômago sofre.

Calçou os chinelos, vestiu uma blusa velha, com dois furos embaixo do braço esquerdo, ajeitou furtivamente o cabelo e rumou a padaria.

14.2.11

Miguel e Luiza - III (para ler ouvindo o tango no final do post)

A casa parecia um pouco mais viva. Do banheiro exalava um perfume bom, mistura do cheiro de sabonete e de xampu. Luiza tomava banho e ele achava graça da porta entreaberta que lhe permitia observa-la pelo espelho. Mais engraçado era o fato de que a convidada nem havia pedido a permissão para tomar o banho. Achava todo aquele silêncio um tanto quanto interessante apesar de sentir-se aflito para entender como tudo havia culminado naquilo.

Aproveitou estes momentos para separar seu material de trabalho. Na condição de fotógrafo profissional era muito zeloso com seu equipamento. Escolheu as lentes adequadas para o serviço que executaria na noite, e de forma metódica colocava-as lado a lado em cima da escrivaninha da sala de seu pequeno apartamento. A vontade de quebrar o silêncio sepulcral lhe fez colocar uma música. La vida mia, um tango dos irmãos Fresedo. Agora se sentia melhor. Deixou todo material em cima da escrivaninha como se tivesse montado um rol materializado. Sentou-se no sofá e acendeu uma cigarrilha que ainda lhe restava com seu velho Zippo. Observava seu equipamento com certo prazer e parecia ser um dos poucos momentos onde se distraía e conseguia não pensar em nada.

Luiza saiu do banheiro envolta em sua toalha e ele achou isso engraçado. Seus cabelos negros estavam molhados e rigorosamente penteados para trás. No rosto algumas gotículas de água tornavam seu doce rosto ainda mais interessante. Ela caminhou pelo corredor e Miguel percebeu que ela deixava um pequeno rastro de gotas d’água. Sorriu para ele rapidamente como quem faz um pequeno esforço para modificar a face. Um daqueles sorrisos compráveis a um levantar de sobrancelhas que usamos para cumprimentar pessoas pouco conhecidas. Ele pensou.

- Que atrevida esta pequena. Como gosto disso.

E quando achou que ia receber alguma palavra ela virou a direita para o quarto, como se estivesse em casa. Ele parou na porta, encostou-se no batente e observou-a vestir-se. Peça a peça. Parecia estar sendo apresentado àquela mulher. A blusa de listras coloridas na horizontal que deixava transparecer o ombro e a alça de um top preto. A calça jeans black de corte moderno com dois furinhos no bolso traseiro. Sentou-se por fim para se calçar e ele reparou que ela se calçava com as pernas cruzadas e não perdeu de vista os pés delicados que se enfiavam em pequenos calçados de plástico. Sentia-se calmo.

- Não fala nada? Ela cobrou, já que estava ali há cinco minutos sendo observada.

- Você também não fala nada, retrucou.

Ela franziu a testa e movimentou o canto da boca fechada para cima como se quisesse dizer, “é verdade!”. E levantou-se da beirada da cama com uma vitalidade de dar inveja ao anfitrião.

- Tango? Gosta realmente de Tango?

Ele pensou em uma resposta elaborada que desse conta de transparecer uma opção madura, mas quando ia falar iniciou-se no som La Cumparsita e ele pensou “meu Deus, quanto clichê!”. Ela tomou-lhe pelos braços imitando uma espécie de dançarina de Tango com o rosto colado no seu e com os braços esticados o guiou de forma inesperada até a porta. Quando o largou ela sorria de forma arrebatadora.

- Então é isso, Miguel! Ela dizia isso num tom de despedida.

- Nem conversaremos mais? Arrependeu-se extremamente de demonstrar tanto interesse. O que pensaria dele?

Ela caminhou pela sala, olhando de um lado para o outro como quem procurava algo. Ao lado das lentes e da câmera estava um cupom fiscal de supermercado. Ela encontrou uma caneta de ponta grossa, daquelas usadas para marcar mídias e escreveu algo. Para a surpresa de Miguel deixou ali mesmo o papel.

Luiza ergueu as sobrancelhas como se anunciasse o inevitável e disse:

- Me liga um dia. Ela tocou os próprios lábios com dois dedos, o indicador e o médio, e levou-os a boca de Miguel como se desse um beijo simbólico no rapaz. Abriu a porta e desceu pelas escadas deixando pra trás um ar tão misterioso quanto à noite que havia passado.


11.2.11

Miguel e Luiza - II

Só não se sentiu mais surpreso porque queria atender ao telefone. E caminhava tentando não se abater pela indelicada observação da convidada. O cansaço que lhe tomava parecia tornar a tarefa de encontrar o telefone ainda mais difícil e nessa hora praguejou contra si por ter optado por um sem fio. Nunca estava no local adequado.

Atendeu sem conseguir reparar o identificador de chamadas e enquanto uma mão juntava o telefone a sua orelha a outra apalpava o sofá onde buscava refúgio da sua tonteira e de seu cansaço.

- Alô, disse ele, sem esconder a voz transtornada.

- Salve, salve seu cachorrão... Está vivo? A voz do outro lado era baixa e aparentava escárnio.

- Quem é? Ele perguntava enquanto tentava observar sua situação por baixo da cueca. Achava que poderia ter algum indicio do que realmente acontecera no dia anterior.

- É João, porra, teu chefe honorário. Dizia isso rindo como um cachorro velho.

- Ah, diga, meu caro. É que estou um pouco gripado. Ouviu uma risadinha abafada vindo lá do quarto e isso o deixou realmente excitado.

- Vai poder trabalhar para mim esta noite?

Ele pensou duas vezes. A ressaca daquela manhã parecia que nunca terminaria. A dor de cabeça que lhe dominava o impedia de tomar decisões. Resolveu levantar para tomar uma água e quem sabe pensar melhor sobre o assunto. E enrolou:

- O que seria?

A voz do outro lado parecia surpresa.

- O de sempre. Afinal você sabe fazer outra coisa?

Enquanto bebia a água procurava sua carteira. Era de praxe depois de uma bebedeira temer pelo dinheiro e seus documentos. Encontrou-a na mesa da cozinha e abriu com os dedos utilizando uma única mão. Concluíra que a noite anterior havia sido dispendiosa, e não hesitou:

- Sim, claro. Diga onde, e a que horas...

- Buscarei você na sua casa as oito, pode ser?

Ele achou ótimo.

- Claro, te aguardo.

Desligaram e ele sentiu alívio, já que se trabalhasse naquela noite poderia restituir os gastos anteriores. Odiava ficar duro e ter que se privar de suas bebidinhas prediletas, de seus cigarros e principalmente das boas comidas.

Voltou ao quarto ainda pensando sobre o trabalho e deparou-se com a sua convidada de pé. Era uma jovem de pele clara, cabelos curtos, corpo bonito. Ela se inclinava para vestir a calcinha e deixava transparecer ao ficar em um pé só, uma doce barriguinha, daquelas puras, aparentemente compostas quase exclusivamente pela pele. Ao vê-lo, a doce menina transmitiu um sorriso que ele achou demasiadamente sincero. Ela acabou de vestir a peça íntima de frente para ele, fazendo um movimento pélvico como se o chamasse. O anfitrião fitou suas mãos delicadas que tocavam a calcinha levemente e subiam em um gesto quase ensaiado. Ele sentiu este movimento ondular como uma provocação. Reparou que ela era alguns centímetros mais alta do que ele. Tinha no braço esquerdo algumas tatuagens que tomavam o ombro e no mamilo esquerdo um pequeno piercing que dava graça aos seios médios.

Atendeu seus instintos e sem muita conversa resolveu tomar a pequena em seus braços. Deu-lhe um beijo sem temer os hálitos matinais pouco agradáveis e nem reparou se de fato havia algo de errado com isso. Ela correspondeu e lhe abraçou na altura da nuca, acariciando seu cabelo. Tomou-a pelas nádegas e ela como se soubesse o que ele queria cruzou as pernas rapidamente em sua cintura. Demonstrando muita habilidade, tombou o corpo para a cama como se estivesse em casa. Ele caiu por sobre ela e fizeram amor com muito vigor, sem respeitar as limitações dos corpos ressaqueados. Ao final a cabeça latejava, o suor escorria pelo seu rosto e o silêncio predominava. Ao retomar a respiração ele olhou para o lado sem virar o corpo. Ela fez o mesmo. Entreolharam-se, pela primeira vez com algum aspecto de cumplicidade. Ele estendeu a mão trêmula e disse:

- Muito prazer, meu nome é Miguel.

- Luiza. E o prazer é todo meu.

10.2.11

Miguel e Luiza - I

O céu era azul e o dia tinha um cheiro molhado. Não sabia se havia chovido por toda madrugada, nem se o verão chegara com seus dias úmidos. Era tudo que ele poderia perceber deitado na cama, observando a fresta da janela que aparecia quando o vento soprava delicadamente a suspender o cortinado de seu quarto. O máximo que se permitia imaginar e o pouco que sua cabeça tomada de dor poderia especular. Seu rosto formigava num movimento intenso que parecia vir das orelhas e terminar na ponta do nariz. O suor descia até parar nas têmporas, percorrendo lentamente as suas costeletas, jorrando pelos cabelos desarrumados. Abaixo dos olhos parecia concentrar toda oleosidade da pele tornando brilhantes suas olheiras, conquistadas por anos a fio de noites mal dormidas.

Acordara, porém mal conseguira erguer a cabeça. Sentia que a roupa de cama havia deixado de cobrir metade do colchão e isso justificava o incômodo nas costas provocado pelo roçar da pele com o tecido. O edredom velho encontrava-se no chão e ao invés do travesseiro, sua cabeça recostava-se numa almofada de retalhos que costumava utilizar para ler antes de dormir. A barriga doía e o coração palpitava, uma mão trêmula trouxe acima o short de dormir enquanto a outra esfregava os olhos cheios de secreções cristalizadas que arranhavam sua visão e a tornava ainda mais difícil. Era necessário ficar de lado para respirar melhor. Talvez colocasse os óculos e abriria um livro que trouxesse esperanças para apartar a aflição duradoura que tomava sua mente sempre que acordava de ressaca.

Rapidamente fez um exame mental, sucinto, de toda trajetória da noite anterior e sua consciência lhe jogou fortuitamente a primeira: EASY PUB. A lembrança veio na forma de um letreiro de néon vermelho. Sentiu na garganta o gosto de Dry Martini e pensou que isso nunca poderia prestar. Mais uma placa lhe atormentou a cabeça: REAL HOT. Temeu que o sentimento adolescente pudesse ter lhe tomado o corpo e teria parado em alguma casa de tolerância. Porém rapidamente a razão lhe recobrou e se lembrou que a placa em questão era na verdade o letreiro luminoso do Real Hotel, com as duas últimas letras queimadas há anos. Sentiu alívio por que tinha vergonha de ir à puteiros, mas temeu pelas companhias. Havia passado em um hotel? E com quem?

Virou-se para seu lado direito e não encontrou lugar na cama. Um corpo lúbrico, coberto pelo lençol branco até a cabeça estava ao seu lado. Sentiu uma espécie de aflição que lhe percorreu a nuca até os intestinos. Fitou-o de cima a baixo e percebeu os pés desnudos. Eram belos pés femininos, sinuosos e delicados, extremamente brancos. As unhas traziam uma tonalidade de vermelho extremamente agradável e ele por um minuto pensou em todos aqueles nomes engraçados de esmalte. Tentou pensar qual seria o nome daquela tonalidade que lhe deixava paralisado. Por dois segundos os pés se mexeram, roçaram um nos outros, se coçando ou se contorcendo, pouco importava. Aquilo lhe deixava extremamente excitado. Aqueles belos pés acenando como se estivessem num exercício sensual. Precisara agora tomar coragem de conhecer o resto deste corpo. Ao menos sabia que os pés valiam a pena. Se na noite anterior tivesse se dedicado as suas fantasias mais esdrúxulas como beijar e lamber aqueles pés, por alguma coisa o porre teria valido a pena. Porém antes que pudesse pensar em qualquer coisa o telefone tocou. Ele nunca deixava de atender ao telefone, era ansioso demais. Tentou levantar delicadamente, já que o único jeito de sair da cama e tomar o caminho da sala onde ficava o telefone era justamente por cima de sua doce convidada. Não hesitou em deixar seu corpo esbarrar lentamente no dela, como se estivesse sinalizando de forma carinhosa que estava aberto para um primeiro encontro consciente. Nenhuma resposta. Ao levantar sentiu uma leve tonteira e pernas fracas. Abriu lentamente a porta e passou ao corredor sentindo nos olhos os efeitos da claridade. Ainda ouviu a voz baixa em tom de sarcasmo:

- Você ronca bastante, hein, guri...

8.2.11

Forra

num quarto a meia luz, se ajeita
à cama, corpo de mulher.

são pés que eu já conheço, de resto
sobra imaginar, curvas, sonhar
bocas.

marcar cena, entrar no quarto
feito fuga combinada, é dia
:
- pra virar noite.

no mesmo telefone que anunciei
minha chegada, marco a hora do
despertador, teus olhos claros me
acompanham quando cruzo o quar-
to.

a tão linda a boca
canta um canto de
anunciação, é per-
na, é falo, é lingua
é braço, é raso, é
saliva, é vulto na
parede, é corpo
é a forra.

desde então, é sorriso.

2.2.11

Ninguém falou



Passava boa parte das suas horas sentada num dos bancos ao lado do Fórum Benjamin Colucci, no Parque Halfeld. Aparentava pouco mais de 50 anos, trajando roupas velhas mas sempre curtas, com decotes. Brincos grandes, batom vermelho. Nunca a vi magra.

Ao lado, sempre uma sacola de supermercado, em cima das pernas a bolsa de couro vermelha. Sempre o mesmo olhar, artificial aos velhos que passavam a encarar. Um pálido sorriso, um olhar, ainda que gélido, revelando a natureza de quem encara a vida. Era um sorriso de resignação.

O horário era disciplinado, tanto para chegar quanto para sair. Afinal em casa deixava família - nunca soube de marido - mas filhos existiam. Isso soube num dia que a vi com um desses pequenos albuns de fotografia, retirados da bolsa vermelha, e exibidos com orgulho para as outras, que assim como ela, passavam as tardes ali.

- Ta vendo? Esse é meu caçula. Essa aqui é a mais velha, já tá com 18 anos...

As poucas vezes que resolvi tomar café na Padaria Nacional encontrava com ela, tomando uma média. Discretamente pagava com algumas moedas, comprava um cigarro a varejo com o troco, acendia ali mesmo no caixa

- Mais alguma coisa, Dona Lúcia?

A resposta era sempre em voz baixa, enquanto soprava a fumaça do primeiro trago.

- Não meu filho, obrigado...

Eu olhava para o senhor do caixa, ele sempre dava um sorriso de canto, e apontava para ela, com as sobrancelhas, como quem diz algo. Eu nunca entendi. Mas poderia subentender que todos sabiam mais que eu sobre ela.

E provavelmente voltava para seu banco, com sua sacola, sua bolsa. Suas roupas velhas, curtas e decotadas. Suas pernas marcadas, cicatrizes, as varizes. A pele queimada de sol. O cabelo de uma cor que nunca saberia identificar.

Era Dona Lucia e suas amigas a sentar o dia inteiro nos bancos em frente o fórum, enquanto circulavam advogados, culpados, inocentes, vítimas, intimados, vendedores de picolé, catadores de papel.

Eu sempre passava por lá, a identificava e nunca tive sequer coragem de olhar em seus olhos.

Na semana passada minhas férias foram interrompidas por questões de trabalho, mais precisamente pela morte do pai de um colega de trabalho. Fui ao cemitério consolar o amigo e ajudar a velar o corpo, apesar de não ser muito afeito a essas coisas.

Na capela ao lado me chamou a atenção uma cena. Uma moça de aparentemente 18 anos sentada numa cadeira do lado trazia no colo uma criança, com semblante estático. Olhos parados. Rosto pétreo.

Em alguns minutos uma confusão se formou. Um repórter de um canal local tentou se aproximar e fazer contato mas logo foi impedido. Curioso, me aproximei para checar o que acontecia e pude reconhecer Dona Lúcia, ali no caixão.

O lado esquerdo da sua face estava totalmente inchado e tomado por hematomas. Do nariz, um pequeno dreno saía, e tornava ainda mais triste aquela cena. Saí de lá, assustado, impressionado com a cena que acabara de ver. Pude ainda ouvir alguns comentários, onde pude distinguir as palavras "hotel", "parque Halfeld", "suspeito" e nada mais.

No dia seguinte as suas companheiras ainda estavam lá, no mesmo banco, lado a lado com os mesmos personagens. A TV não falou nada. Os jornais não falaram nada.

A cidade, aliás, nunca falou nada sobre nenhuma daquelas mulheres, quem eram, ou o que faziam.

Nem eu falei.

31.1.11

JOGO DE DENTRO

disse a ela que batesse as cinzas do cigarro
ali mesmo, no chão do quarto, que não
levantasse em esforço passageiro, que
haverá e há de haver um quê de vida
eterna, nas ternas pernas, de dois corpos
nus
não vá, não se levante
brinque comigo, de bruto diamante
ou de
secreto amigo, amante
ouça o silêncio que lá fora perdura
aproveita que a vida dura
enquanto há luxúria
vamos nós, de corpos enroscados
pela vida afora, feito dois, mais nada
a atravessar horizontes
enamorados


Foto: www.likehome.tumblr.com

23.1.11

Seu Lãozinho estava lá

A primeira vez que vi o sujeito eu tinha por volta dos 10 anos. Visitava Tiradentes pela primeira vez na vida, com pouco afinco histórico ou cultural, devo confessar. Muito mais estimulado pela onda gostosa da excursão de escola.

A cidade estava parada pelas gravações do Memorial de Maria Moura da Rede Globo. Por todos os lados haviam carros, caminhões, trailers, estrutura digna de grande produção global. Logo depois da ponte de pedra me chamou a atenção, a placa de um boteco: "Impóriu dos Malas". Na porta um sujeito barrigudo, sorridente, cabelos umedecidos, penteados pra trás. Bermuda velha, camisa branca e chinelos de dedo. Numa das mãos uma escova, utilizada pra dar um brilho nos pêlos de uma égua velha, resignada com os carinhos do suposto dono. Na outra mão um cigarro, que eu não via ele fumar. A cinza grande se acumulava.

Resolvemos dar uma paradinha, eu e meus colegas de escola na birosca do outro lado da rua. Eu, ainda curioso com a figura do outro lado, atravessa a rua com o pescoço torcido, esperando algum gesto que revelasse mais sobre a figura. Eis que de dentro da birosca saiu o ator Jackson Antunes, com uma translúcida bagaceira na mão, de sorriso imponente e me alertou:

- Aquele lá, moleque, é o seu Lãozinho.

Entre a surpresa da manifestação do ator global e a revelação, que pouco dizia, segui mudo até o balcão, comprei minha água mineral e prossegui junto da minha excursão escolar, disciplinado como mandava a Tia Elza, supervisora pedagógica de minha escola, mas com a cabeça a mil.

Já sabia que a figura desleixada que cuidava do cavalo era Seu Lãozinho.

Alguns anos se passaram até que voltasse a Tiradentes. Já mais velho retornei a cidade por mais uma vez com uma excursão da escola. O "Impóriu dos Malas" permanecia lá, intacto. Resolvi comprar lá minha água mineral, e confesso, fraquejei na vontade de perguntar se ainda existia na cidade o tal Seu Lãozinho e sua égua velha.

Seguimos a casa do Padre Toledo, espaço histórico encantador. No porão, o local onde os inconfidentes se reuniam, sob a tutela do padre. No centro uma fonte dos desejos. Eu, cético, achei que aquilo era uma grande bobagem e ponderava sobre a possibilidade de jogar uma das minhas moedas ali, a troco de desejos, muitas vezes obtusos. Me chamava a atenção a água límpida, que refletia a pouca luz da escuridão do porão subversivo. Escuto então uma voz:

- Joga uma moeda, rapaz. Não tem o que temer. Um trocado, um sonho.

Olhei pra trás e lá estava o famigerado Seu Lãozinho, com os mesmos cabelos, barba por fazer, jeito desleixado. Pude observar que ainda na mão trazia seu cigarro. Eu sorri, sem graça, e resolvi atender o apelo.

- Boa rapaz, agora vai pra junto da tua turma que a professora já tá te olhando de cara feia.

E mais uma vez foi embora o Seu Lãozinho. Eu não sabia muito bem por que achava aquela figura tão curiosa. Não fazia o tipo matuto, não era vaqueiro, não era matuto. Fazia o tipo de um outsider que teria ido morar por ali depois da aposentadoria e curtia seus anos de descanso no desleixo, fumando um cigarro, saboreando umas cachaças e afagando a égua velha, que provavelmente mais era de estimação do que para transporte.

Antes de ir embora, uma passada na Associação dos Artesãos de Tiradentes para comprar uma lembrança. Escolhi uma faca de ferro com bainha de couro. Coisa de moleque. Paguei, recebi o embrulho e pouco antes de sair ouvi a balconista dizer para outra mulher que se encontrava no fundo da loja.

- Tem de avisar pro Seu Lãozinho que as facas acabaram. Manda ele trazer mais. se não tiver pronta lá, que faça mais. O movimento aumentou.

Saí de lá ainda mais impressionado com a forma como aquela figura circundou minhas idas a cidade. Passaram-se dez anos sem que eu fosse a Tiradentes.

Incentivado por minha companheira Cecília voltamos a Tiradentes para a Mostra de Cinema. Curtimos a cidade de forma incrível já na sexta-feira. Cabe dizer que nem me lembrei da figura daquele senhor.

Até que no sábado a noite, depois de assistirmos um filme na praça, subimos as ladeiras e cruzamos a Rua Direita em busca de um lugar pra comer. Em frente ao Bar do Bizuca um samba improvisado comia solto, ali mesmo na calçada.

Achamos a música boa mas a fome já apertava, resolvemos passar direto. Quando olhei pra trás, ainda que de relance, pude perceber uma figura conhecida, perto do batente da porta do bar, copo e cigarro em punho. Era ele. Seu Lãozinho observa atento a batucada, com o mesmo sorriso, o mesmo olhar. Não tive reação, segui andando com Cecília sem nem comentar nada com ela.

Encontramos um bom lugar pra comer, bons amigos pra papear e o fato foi esquecido. Chope vai, chope vem, a noite terminou e voltamos a nossa pousada. Ambos com sono e com vontade de descansar dos dias quentes e agitados.

Mas como bom insone, e incomodado com o calor, acabei me levantando da cama e indo tomar um ar na varanda da pousada, por volta de duas horas da madrugada. A rua já estava relativamente vazia. Mas eis que uma figura conhecida atravessa a ponte de pedra e vem caminhando em minha direção. Era ele mais uma vez. De olhar singelo, com seu cigarrinho.

- Sem sono, garoto?

Finalmente tomei coragem de responder.

- Sim, o calor, a cama estranha.
- Verdade. Isso tira o sono de qualquer um.

Ele deu o ultimo trago no cigarro, sorriu tranquilamente e disse:

- Ainda tem lugares abertos nessa cidade. Eu diria que abertos desde tempos coloniais. Tomamos uma cachaça?

Me sentindo o mesmo garoto de sempre respondi rápído, talvez não muito assertivo.

- Hoje não, amanhã acordo cedo para arrumar malas e viajar depois do almoço.

Ele balançou a cabeça positivamente, sem perder o sorriso, fez um gesto com a mão sobre a cabeça como quem me saudava e caminhou pela escuridão. Mas antes de ir em definitivo olhou pra trás e perguntou:

- Afinal, o desejo da fonte, realizou-se?

Eu dei de ombros, tentando explicar com um gesto que nem me lembrava do que havia pedido.

- E a faca? É boa?

Fiz um sinal de positivo, mesmo sem nunca ter sequer tirado a tal faca da bainha. E ele sumiu mais uma vez da forma simples como aparecia.

Não revelei tal história para Cecília, que provavelmente saberá dela, lendo este texto.

Quando chegamos em casa antes mesmo de desfazer as malas, procurei a velha faca na gaveta. Ela não estava lá.

Aliás ela provavelmente nunca esteve lá. Assim como a moeda na fonte do porão da casa do Padre. Assim como o tal velho que fumava enquanto escovava sua égua velha.



6.1.11

EM FUGA

flor de cheiro, espinho
espezinha dedo, napa
enche olhos. É olor de
madrugada. Pétala faz
vulva,volver, voltar
verve de falo é arrocho
de corredor, é fodinha
de amor. É paixão em
fogo, oríficio proibido,
em fuga.


31.12.10

Feliz 2011

RETIRO USUAL


deslig'alma bagaceira santíssima
que o corpo não mais cede ao apelo
da sede insólita

é copo americano
é batuque em violão
é roda de fiada conversa
que firma em verso testemunho
é frouxidão de nó de gravata, colarinho
de homem, de chope, de branco, de crime, de paz.

Garganteia madrugada quem molha a mesma
com goles de paixão cética pela vida.


HORIZONTE


é avante que os olhos furam
limites. Decerto é a tal de
esperança que faz fio.

28.12.10

letramar

Letramar é serpente
que risca em terça, li-
tígio dissonante canção
abrigo de coração. verso
é poeta sem eira com
beira, é água é ânsia de
santa, bárbara, iansã.

Letramar é fonema de-
clama, infinitivo de le-
trar, deleite de bebum
assunto de pescador,
rede de farra, sarrafo
a farfalhar, é safo, afoi-
to, finge que foi, mas
nem crê.

Letramar é catulagem,
passagem de alma, é
louça lavada e prato
de barro, oferenda de-
certo esperança que es-
prai, sindrome de poeta
é palavra incerta que
busca de eternidade.

17.12.10

Dezembro

dezembro este mês molhado
com gosto de natal e ano novo
mês de poesia
mês que o verso sai por aí
atrapalhado a inundar meus papéis
e minha cabeça

numa loja qualquer tento escolher presentes de natal
entre um café e outro
busco nas outras sentido pra vida
nas outras histórias nos outros
tombos, recaídas, reerguendo a caneta
que desliza incólume pelo corpo
que vira poesia

dezembro me sorve tipo onda
brisa, crista, de uma loucura qualquer
dezembro, desalento
um embro, um emo, um dêz
a dezembrar este coração leviano
e isso que quero deste mês
leviano

que leve o ano
que leve quanto
pena, o penar

quero um ano novo, uma virada
leve feito seda e que não falte
a seda, leda,
o ledo engano de que tudo vai se repetir
na vida de um poeta
sagitariano
funcionário público
que publica seus sentimentos mais
impublicáveis
que encana no doce gosto da cana
e troca a cama
pela mesa de bar

dezembro já vai, já vai tarde
vai de táxi, vai de ônibus
sai de perto, vade retro
pra longe anunciando pontes
dietas, regimes, abistinências
policiais diligências, gritos histéricos
ecoando pelo hemisfério

dezembro se vai
foi
embora,
embora as mais velhas vontades
nostalgicas, taradas
insistam que fique
pra tomar mais um copo

7.12.10

poesia - mododefazer

queira saber.
estenografar palavras

ansiedade dúbia;
inerente, em português,

o fazer-se é grandioso.
em inglês, complexa tradução
do the making of.

poeta brasileiro assobradado,
em cânone insiste,

não esmiuçar estrelas
externar as sobras,
desmerecer desafio.

poesia, modo de fazer,
é vernáculo de poeta.

25.11.10

100 km

era a garota loira e seus pés pequenos a balançar, deitada de bruços. era a beira e todo alpendre, varanda, beiral, parapeito. era o sorriso tonto, a boca seca, os olhos grandes da garota que era. era a vontade do vagabundo, sua camisa larga, suas olheiras. sua vontade de dirigir 100 km era; a busca da garota loira dos pés que balançavam.

era só buscar a garrafa de espumante e a caixa de trufas vagabundas na loja de conveniência. era ajeitar os óculos de grau, velhos, tortos, controlar as mãos no volante, olhar sempre o retrovisor, era, ansiedade.

era tocar a barca em frente, estrada afora, desejo a dentro, esperar as promessas de amor e tesão, da loira e seus olhos grandes, de que "sim, meu amor, hoje eu sou tua, sim, lindo, vem desse jeito, mas vem rápido". era.

era esperar que a repulsa de outras noites troca de nome com o afeto, que marcha, em riste a força de vontade. era.

era um carro. vai noite a fora 100km noite adentro, rasgando estrada, contornado poeira, zunindo pneu no asfalto. a fim de chegar cedo pra fazer a que veio, a que é. era.

18.11.10

signos

manchete não dá cabo, acoberta folha de jornal, cobertor
condescendência do aplauso enche pança, pisca olho, prisma.

afago enche a cabeça, acalenta o coração, mas não transa linguagem.

e eternidade é o sorriso do velho professor, sinal de respeito
a barba branco do Haroldo, a balançar semiótica.

9.11.10

Eco nesta semana

Neste mês de novembro voltamos, desta vez juntos do encerramento
da semana de Letras da UFJF.

O evento acontece na sexta-feira dia 12 a partir das 21h, no Mezcla. Teremos dois convidados especiais nesta edição:

Thiago Camelo (RJ)
http://veraoembotafogo.blogspot.com/
Diego Grando (RS)

http://ativastentativas.wordpress.com/


Trupe do Eco Performances Poéticas,
com Mr. Pedro Paiva nas Pick-Ups
+ convidados

Ainda na programação da festa, show a banda
Lumiere

(haverá cobrança de couvert)

1.11.10

Pó compacto

reboca com galhardia a face
outrora não se usava no verão
esplendida geratriz do disfarce
mística musa do senão

ao imiscuir-se de sua beleza
tenaz, provoca sentidos
desfere ilídimos olhares
para desespero do marido

reveste as maçãs do rosto
na pista de dança, na praia
oh, suor que está convosco
mancomuna-se à sua laia

externando mil “senões”
desmonta simplória faceta
esconde as agruras letais
carrega magia-maleta