31.8.06

a estrada. a vontade de chegar. o medo de deixá-la.

eram 4:52 a.m. num relógio digital. nenhuma rádio fm poderia ser sintonizada numa rodovia. e era de hábito ouvir uma rádio qualquer àquela hora.
a trepidação das rodas no asfalto balançava as duas garrafas vazias jogadas no chão sob o banco traseiro. e geravam uma espécie de música: o tinir das garrafas misturado com o rádio sem sintonia. e nessas horas confunde-se a neblina com a areia dos olhos.
dirigir era um daqueles raros prazeres solitários.
à diante as luzes coloridas indicavam um posto de gasolina. toparia uma parada para um lanche, daqueles de balcão, onde a fome duela com a desconfiança do estado das coisas. ao fim sentou-se à porta saboreando o café requentado; uma nova música nos ouvidos: as freadas hidráulicas incidindo no silêncio dos grilos da madrugada de uma estrada qualquer. o cheiro de posto tornava o café mais atraente e autorizava à mente aventuras de saudade.
de volta ao carro os primeiros minutos de volta à estrada pareciam segundos de silêncio obsequioso. e como passaram velozes. os olhos de areia marejaram-se ao tangenciar cada curva. o rádio ligado, enfim sintonizava. sinal da proximidade do destino.
tal fato misturava dessa vez felicidade em relação a chegada; mas aflição por deixar a estrada.

18.8.06

Eu vou arrumar as malas e vou embora de São Paulo

Eu vou arrumar as malas e vou embora de São Paulo. Guardarei minhas camisas e gravatas e deixarei a cidade; até hoje não encontrei a dura poesia concreta de tuas esquinas. Acomodarei as tesouras e alicates na minha nécessaire e vou embora porque José Serra construiu rampas embaixo dos viadutos para desalojar os moradores de rua. Em caixas seguras vou guardar meus discos e livros e pegarei o ônibus mais próximo que me leve daqui. Vou embora, pois aqui só existem microondas e celulares. Vou encher minha mochila com meus equipamentos e suprimentos, e desbravarei qualquer trilha que me tire daqui; antes que a Opus Dei eleja Alckimn. Colocarei todos os documentos na minha maleta 007 e gritarei: “táxi! Siga aquele lugar melhor!” Não posso viver mais aqui, enquanto a usp não construir um busto para Florestan Fernandes.
Guardarei todos os projetos arquitetônicos no canudo e corro daqui. Antes que os governantes daqui inaugurem mais uma dúzia de museus que piscam.
Colocarei minha carteira em uma pochete e comprarei um ticket do metrô e irei embora antes que haja mais carros que pessoas.
E os meus segredos, todos irão no meu baú e fugirei de navio, antes que o Tietê desapareça.
Guardarei minhas camisas Lacoste na minha mala Louis Vitton, antes que tudo vire Daslu.

Antes que armem um falseado grito do Ipiranga.
Antes que haja outro rodeio.
Antes que abracem Marcelo Rossi e esqueçam Evaristo Arns.
Antes que me ofereçam outro hot dog.
Antes que ouça outra buzina.
Antes que eu não veja o mar.
Antes que eu não veja as montanhas.
Antes que me obriguem a ler o Estadão.

Vou embora de São Paulo. De mala e cuia. Afinal, São Paulo já foi embora de mim.
Antes que eu deixasse de ser brasileiro.


(agrdeço a Cecília Delgado pelo trabalho de editoria, pelos conselhos e dicas jornalísticas que permitiram esse texto estar aqui!)

15.8.06

Neo(concret)izando o Maio de 68

no maio de 68
a sociedade civil

no maio de 68
a sociedade civil

no maio de 68
a sociedade civil

no maio de 68
a sociedade civil

no maio de 68
a sociedade civil

no maio de 68
a sociedade civil


no maio de 68
a sociedade se viu

8.8.06

O poeta versus o militante - Neruda em Moscou

Poucas obras evidenciaram o conflito vivo entre o artista e o militante como “Elegia” de Pablo Neruda. Obra póstuma publicada em 1974, reúne poesias escritas pelo poeta durante sua estada em Moscou no auge do regime soviético. Os versos guardam um grande poder de descrição da realidade lírica e política da URSS. Acrescido a isso o poeta se alterna entre a certeza e a ansiedade acerca dos frutos do regime. Uma Moscou, real, atormenta a cabeça do poeta; outra, idealizada, habita seu coração.

Moscou cidade de grandes asas
Albatroz da estepe


Nos versos Neruda constrói a Moscou que vive em suas ambições de militante

Moscou através de seus padecimentos
Instaurou a limpeza da história


Apesar da predisposição ao regime, o poeta pondera quanto Stálin

Logo dentro de Stálin
Passaram a viver Deus e o demônio


Elegia é um retrato do poeta em confronto com o político. Neruda sofre as intempéries do estalinismo que sufocam sua alma lírica. Na verdade ele ama a URSS de Maiakovsky, de Eisenstein, onde o agir político deveria ser instrumento cabal da realização que possibilitaria o homem tratar-se quanto sua própria matéria prima. Uma revolução a serviço da felicidade.(o próprio Marx escreveu sua tese de doutorado em filosofia sobre Epicuro)Obviamente o mundo real é força preponderante na poesia. Elegia quer dizer “poesia triste”. E esse parece ser o saldo final de Neruda em relação ao que vinha se transformando aquilo que parecia ser a maior possibilidade de experiência humana de todos os tempos. O militante , ser racional, se depara com aquilo que o poeta não aceita.E isso deixa marcas no poeta. O poeta militante carrega em si hoje um misto de tristeza e esperança muitas vezes marcado por um passado de erros e derrotas a que toda uma geração foi marcada. Tal fato se expressa nos versos de hoje, daqueles que abandonaram o engajamento ou não. Como diria Marx, no 18 Brumário: “a tradição de todas gerações mortas oprimem como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Aos poetas-militantes resta por toda a vida alternar entre os versos de esperança e as maiores elegias. Até o dia de uma nova vitória.

2.8.06

Meu doce berço de cedro

em homenagem ao povo libanês

nas folhas que escoam
as gotas - pelo ósculo
(quase
um olho)
dos cedro que
habitam
os campos de glória
e beleza do Líbano
caem as gotas de meu pranto
no rosto seco
de minha gente

e chovem mísseis por sobre
as cabeças
de primos e primas, vitimados
pela
vontade
do arame farpado que se estende
na madrugada, e rouba
pedaços de família
escolas
comida

e se esvaem casamentos
(e filhos)
a morte chega rápida
(e pais)
a dor nunca se vai

quem estará mais perto de Deus?

a tal gente santa de Israel
lança a tira-colo bombas
entre os
lares
de gente como eu, e caem
dentro das almas, em fogo
a riscar de vermelho-sangue
o céu do Líbano

entre bombas e cantos...

jogam bombas
como se apagassem
a gana de coragem de uma gente
forte
amada
das danças, da música
dos lares
do cheiro de azeite, de pão
de carneiro
a temperar vidas que
resistem

como se apagassem minha memória
meus antecedentes, morais - meu ser
minha bravia redenção
meu doce berço de cedro
que embala
de tão longe
minhas
razões
minha existência

haverão bombas suficientes contra o porvir?