17.1.09

A enchente


a água subia rapidamente e ultrapassava meu medo de forma cavalar, e sentíamos um frio na espinha ao perceber que uma fina camada de água cristalina resolveu passar por cima da ponte e tocar nossos sapatos - logo meu sapato de couro, sola de couro escorregadia que eu risquei com o canivete pra não escorregar mais - arriscado ali de se molhar e pesar nos meus pés. enchente é coisa séria. veio ontem um homem que ninguém sabia bem que era e gritava como louco, montado num cavalo preto - "lá vem a tromba d'água" - só sei que meu pai largou até o chapéu de feltro e resolveu acudir minha mãe, a juntar os trapos e salvar o velho rádio de madeira com "dial" prateado que sintonizava aos berros a rádio nacional. eu vesti calças, camisa de botão e um paletó. e meus sapatos novos. minha vó mora no alto e nos aceitara em sua casa enquanto passa esta tormenta. tormenta de água. água forte a molhar a canela até mesmo de quem mora na rua halfeld. eu achei graça das moças levantando os vestidos até o meio da canela e mostrando as meias brancas, tão pálidas quanto os rostinhos cheios de pó compacto. no meio da confusão alguém perdeu um chapéu do estilo "côco", e eu coloquei na cabeça e me debrucei na ponte a avistar a água subir e fazer estragos, peralta, pelas ruas desta cidade. a chuva me molhou e minha mãe me disse - "pareces um carroceiro, viajante, com estas roupas largas e este chapéu engraçado". e eu queria naquele momento ser mesmo viajante e só estar ali de passagem. eu ria de nervoso e acreditei que o rio ia engolir tudo. as ruas, as casas, a escola e Josefina. Ah, Josefina, linda garota, de dentinhos separados e sardinhas no rosto. Que a água leve tudo! Menos minha Josefina. E de pranto em pranto deixei estes versos pra água levar: quem nunca quis morar na beira do rio, o rio vai morar na beira de tua porta. vai assombrar tua loja, vai subir e descer tuas escadas a fazer um barulho estranho de água que lava e leva lavra novos caminhos atalhos densos, auspiciosos de memória e guardará pra sempre no coração a ponte, que parecia as meninas (que levantavam as saias), a erguer-se pra passar a água

13.1.09

(nada)

hesitei, hesitava, não hesito mais
não mais permito a dor do corpo
me servir de escopo para regredir
nem tolero passos adiante
nem caso mediante sorrisos desconjuros beijos descompassos

sou poeta, sim,
sei que você não gosta destes rótulos pretenciosos
sei que tu cara de tatu,
odeia tudo que inspira liberdade
mas eu sou assim não hesito mais,
nem menos meço meu tempo
em palavrinhas maleducadas contra ti, tu, nós, vós, voz
tornei-me atirador de eliteversos,
desconversos
meu relógio já não mais para
nem faz o velho tic tac careta
de quem vê passar o tempo,
no silêncio agora eu sou assim,
eu conto um causo aumento um ponto,
invento contos disco telefones errados,
aguardo telefonemas que nunca vem,
cartas que nunca chegam
mas de peito aberto sou morno,
quente quando a hora cola
e de certo acerto o alvo
e celebro com taças imaginárias cada dia vivido,
como se fosse um passo duro em direção à nada

(aproveito pra dizer: um feliz doismilenove! poesia.arte.e tudo mais)