31.1.11

JOGO DE DENTRO

disse a ela que batesse as cinzas do cigarro
ali mesmo, no chão do quarto, que não
levantasse em esforço passageiro, que
haverá e há de haver um quê de vida
eterna, nas ternas pernas, de dois corpos
nus
não vá, não se levante
brinque comigo, de bruto diamante
ou de
secreto amigo, amante
ouça o silêncio que lá fora perdura
aproveita que a vida dura
enquanto há luxúria
vamos nós, de corpos enroscados
pela vida afora, feito dois, mais nada
a atravessar horizontes
enamorados


Foto: www.likehome.tumblr.com

23.1.11

Seu Lãozinho estava lá

A primeira vez que vi o sujeito eu tinha por volta dos 10 anos. Visitava Tiradentes pela primeira vez na vida, com pouco afinco histórico ou cultural, devo confessar. Muito mais estimulado pela onda gostosa da excursão de escola.

A cidade estava parada pelas gravações do Memorial de Maria Moura da Rede Globo. Por todos os lados haviam carros, caminhões, trailers, estrutura digna de grande produção global. Logo depois da ponte de pedra me chamou a atenção, a placa de um boteco: "Impóriu dos Malas". Na porta um sujeito barrigudo, sorridente, cabelos umedecidos, penteados pra trás. Bermuda velha, camisa branca e chinelos de dedo. Numa das mãos uma escova, utilizada pra dar um brilho nos pêlos de uma égua velha, resignada com os carinhos do suposto dono. Na outra mão um cigarro, que eu não via ele fumar. A cinza grande se acumulava.

Resolvemos dar uma paradinha, eu e meus colegas de escola na birosca do outro lado da rua. Eu, ainda curioso com a figura do outro lado, atravessa a rua com o pescoço torcido, esperando algum gesto que revelasse mais sobre a figura. Eis que de dentro da birosca saiu o ator Jackson Antunes, com uma translúcida bagaceira na mão, de sorriso imponente e me alertou:

- Aquele lá, moleque, é o seu Lãozinho.

Entre a surpresa da manifestação do ator global e a revelação, que pouco dizia, segui mudo até o balcão, comprei minha água mineral e prossegui junto da minha excursão escolar, disciplinado como mandava a Tia Elza, supervisora pedagógica de minha escola, mas com a cabeça a mil.

Já sabia que a figura desleixada que cuidava do cavalo era Seu Lãozinho.

Alguns anos se passaram até que voltasse a Tiradentes. Já mais velho retornei a cidade por mais uma vez com uma excursão da escola. O "Impóriu dos Malas" permanecia lá, intacto. Resolvi comprar lá minha água mineral, e confesso, fraquejei na vontade de perguntar se ainda existia na cidade o tal Seu Lãozinho e sua égua velha.

Seguimos a casa do Padre Toledo, espaço histórico encantador. No porão, o local onde os inconfidentes se reuniam, sob a tutela do padre. No centro uma fonte dos desejos. Eu, cético, achei que aquilo era uma grande bobagem e ponderava sobre a possibilidade de jogar uma das minhas moedas ali, a troco de desejos, muitas vezes obtusos. Me chamava a atenção a água límpida, que refletia a pouca luz da escuridão do porão subversivo. Escuto então uma voz:

- Joga uma moeda, rapaz. Não tem o que temer. Um trocado, um sonho.

Olhei pra trás e lá estava o famigerado Seu Lãozinho, com os mesmos cabelos, barba por fazer, jeito desleixado. Pude observar que ainda na mão trazia seu cigarro. Eu sorri, sem graça, e resolvi atender o apelo.

- Boa rapaz, agora vai pra junto da tua turma que a professora já tá te olhando de cara feia.

E mais uma vez foi embora o Seu Lãozinho. Eu não sabia muito bem por que achava aquela figura tão curiosa. Não fazia o tipo matuto, não era vaqueiro, não era matuto. Fazia o tipo de um outsider que teria ido morar por ali depois da aposentadoria e curtia seus anos de descanso no desleixo, fumando um cigarro, saboreando umas cachaças e afagando a égua velha, que provavelmente mais era de estimação do que para transporte.

Antes de ir embora, uma passada na Associação dos Artesãos de Tiradentes para comprar uma lembrança. Escolhi uma faca de ferro com bainha de couro. Coisa de moleque. Paguei, recebi o embrulho e pouco antes de sair ouvi a balconista dizer para outra mulher que se encontrava no fundo da loja.

- Tem de avisar pro Seu Lãozinho que as facas acabaram. Manda ele trazer mais. se não tiver pronta lá, que faça mais. O movimento aumentou.

Saí de lá ainda mais impressionado com a forma como aquela figura circundou minhas idas a cidade. Passaram-se dez anos sem que eu fosse a Tiradentes.

Incentivado por minha companheira Cecília voltamos a Tiradentes para a Mostra de Cinema. Curtimos a cidade de forma incrível já na sexta-feira. Cabe dizer que nem me lembrei da figura daquele senhor.

Até que no sábado a noite, depois de assistirmos um filme na praça, subimos as ladeiras e cruzamos a Rua Direita em busca de um lugar pra comer. Em frente ao Bar do Bizuca um samba improvisado comia solto, ali mesmo na calçada.

Achamos a música boa mas a fome já apertava, resolvemos passar direto. Quando olhei pra trás, ainda que de relance, pude perceber uma figura conhecida, perto do batente da porta do bar, copo e cigarro em punho. Era ele. Seu Lãozinho observa atento a batucada, com o mesmo sorriso, o mesmo olhar. Não tive reação, segui andando com Cecília sem nem comentar nada com ela.

Encontramos um bom lugar pra comer, bons amigos pra papear e o fato foi esquecido. Chope vai, chope vem, a noite terminou e voltamos a nossa pousada. Ambos com sono e com vontade de descansar dos dias quentes e agitados.

Mas como bom insone, e incomodado com o calor, acabei me levantando da cama e indo tomar um ar na varanda da pousada, por volta de duas horas da madrugada. A rua já estava relativamente vazia. Mas eis que uma figura conhecida atravessa a ponte de pedra e vem caminhando em minha direção. Era ele mais uma vez. De olhar singelo, com seu cigarrinho.

- Sem sono, garoto?

Finalmente tomei coragem de responder.

- Sim, o calor, a cama estranha.
- Verdade. Isso tira o sono de qualquer um.

Ele deu o ultimo trago no cigarro, sorriu tranquilamente e disse:

- Ainda tem lugares abertos nessa cidade. Eu diria que abertos desde tempos coloniais. Tomamos uma cachaça?

Me sentindo o mesmo garoto de sempre respondi rápído, talvez não muito assertivo.

- Hoje não, amanhã acordo cedo para arrumar malas e viajar depois do almoço.

Ele balançou a cabeça positivamente, sem perder o sorriso, fez um gesto com a mão sobre a cabeça como quem me saudava e caminhou pela escuridão. Mas antes de ir em definitivo olhou pra trás e perguntou:

- Afinal, o desejo da fonte, realizou-se?

Eu dei de ombros, tentando explicar com um gesto que nem me lembrava do que havia pedido.

- E a faca? É boa?

Fiz um sinal de positivo, mesmo sem nunca ter sequer tirado a tal faca da bainha. E ele sumiu mais uma vez da forma simples como aparecia.

Não revelei tal história para Cecília, que provavelmente saberá dela, lendo este texto.

Quando chegamos em casa antes mesmo de desfazer as malas, procurei a velha faca na gaveta. Ela não estava lá.

Aliás ela provavelmente nunca esteve lá. Assim como a moeda na fonte do porão da casa do Padre. Assim como o tal velho que fumava enquanto escovava sua égua velha.



6.1.11

EM FUGA

flor de cheiro, espinho
espezinha dedo, napa
enche olhos. É olor de
madrugada. Pétala faz
vulva,volver, voltar
verve de falo é arrocho
de corredor, é fodinha
de amor. É paixão em
fogo, oríficio proibido,
em fuga.