27.4.12

céu vermelho

eu disse a ela que olhasse a vermelha marca do céu que saía da fissura das nuvens, o elã, intenso, partido. mas ela não olhava. insistiu na velha história que seu vestido vermelho não o era.

- é apenas o reflexo do céu, meu bem.
- e por que não olha o céu?
- por que gosto dele assim, vivo nos teus olhos.

o silêncio. uma arte, da tranquila cumplicidade estéril. o mar, em som estereo. quadrifônico, como a qualidade oferecida e nunca obtida nos discos que comprava. 

e fez-se uma maré estranha.

havia o cheiro bom. havia a restinga. o farol apagado. restos de vida na areia. e de novo havia silêncio.

só interrompido quando ela ergueu o braço. a sonoridade do bater e rebater das pulseiras. umas nas outras, como se fossemos nós. estilhaçar ouro, prata, cobre.

cada grama era reluzente poeira. como se ela fosse a magia. e fazia isso sorrindo, apertando os olhos. a boca entreaberta.

- eu já terminei.

sua voz calava o oceano atlântico.

e eu, permiti a seu corpo apenas a tornozeleira de palha.


20.4.12

espelho

diante o aço que brilha, um estranho:
- olhos de estanho, um mormaço na alma.

de dentro, impossível não ser cirúrgica
a retirada de estilhaços incandescentes.

entende: é um istmo que serve de calço.
enlaço, é frívolo o recurso do dístico.

não anota em suas anáguas as memórias.
pela hora teme - ritmo das mágoas.

se a pele revolveu a dentro, por anos
supomos aceitar a carne-fora exposta.

vermes e veias, tingidos tão rubros:
um urro ao pousar de  uma borboleta.

como contraste de pele alva ferida,
pele branca de urso polar em sangue.

devoramos todos, com claros dentes,
os mesmos que desacatamos sorrisos.

mas

diante o aço que brilha, um estranho:
em caso de emergência, não titubeie.

quebre o impostor que agora habita 
inconvenientemente o espelho.






16.4.12

Dodge Dart

- Atenção patrulha 0632, aqui é a central, Rodrigues no rádio. Quem me copia?
- Palhares na escuta, central. Prossiga.
- Descendo a avenida principal com faróis baixos e amortecedores rebaixados um veículo Dodge Dart sem placa e de pintura preta. Dentro do veículo encontram-se quatro individuos suspeitos, todos sem camisa, cabeça raspada e ouvindo uma música assustadora. Olha, Palhares eu tenho filho adolescente e posso dizer, tem jeito de ser um bando de emaconhados adoradores do diabo. Copiou?
- Positivo, central. Já estamos alterando a nossa rota para cruzar com esses arruaceiros. Pode confirmar a diligência. Copiou?
- Positivo, bravo soldado. Servir e proteger. Desligo.


Sempre que voltavamos da diversão noturna desciamos a avenida principal daquela cidade de merda ao som de Korzus. Isso aconteceu antes que Lorraine morresse; antes que meu Dodge Dart virasse sucata na mão de policiais corruptos; antes mesmo que eu morresse. 

Diversão noturna: o eufemismo que usavamos para explicar a surra que davamos nos playboys do bairro da Casa Alta ao menos duas vezes por semana. No início eles nos encaravam. Depois de um ano quando o Dodge Dart preto apontava na esquina era divertido ver a disputa das bonequinhas para ver quem conseguia correr primeiro. Alguns se mijavam.

O Dodge Dart eu comprei com meu fundo de garantia, quando fui demitido da gráfica após esbofetear o chefe da seção que se negou a me deixar assinar meu ponto corretamente. A justa causa virou acordo. Eu ainda tinha muita porrada guardada para meus superiores.

Infelizmente o dinheiro nunca permitiu que eu pudesse pintar meu carro em um lanterneiro. Mas com a grana que sobrou comprei uma bomba de flit e um rolo de tinta, além dos galões de tinta especiais. Passamos muitos domingos pintando o velho carro. Camada a camada de tinta, cirurgicamente depositada sobre o manto de durepox que consertava as imperfeições da lataria.

Na feira de domingo comprei por uma bagatela um toca-fitas japonês. Roubado, claro.

Meu nome não interessa. As pessoas me conheceram pelo apelido: Carca. Desde criança me chamam assim. E nas noites de litigio profundo da moral, eu, Milha, Porco e Vica habitavamos o Dodge Dart com nossos sonhos que rapidamente se traduziam em pesadelos alheios.

Eu morri depois de Lorraine. E Lorraine nunca andou no Dodge Dart. Eu acho que a amei desde a época que ela ainda se chamava João Carlos e éramos crianças. Mas nunca poderia suportar viver assim. Eu, surrando moleques folgados pela noite. Ela, vendendo o corpo nas ruas paralelas às que eu fazia escorrer sangue.

Eu matei Lorraine. Por vergonha de amá-la. E isso ninguém nunca soube e nem saberá, só agora que eu confesso em forma de uma prosa imbecil o meu crime. E até hoje suspeito que foi por vingança que aquele homem invadiu minha casa e atirou em mim no banho com uma 12. Minha mãe até hoje lamenta que por causa disso meu queixo alinhou-se a nuca. E velório não tivemos.

Eu pensava nela e no meu inexorável destino de ser vítima de mim mesmo enquanto dirigia e trocava fitas no som auto-reverse. Nesse dia, Milha estava pensativo e fazia perguntas estúpidas. Eu pedi que ele se calasse e permitisse que nós vivenciassemos o tédio da madrugada.

Foi num dia 21 de junho, frio e triste, que uma patrulha da Polícia MIlitar mandou que encostassemos. Nunca cederiamos. Esse foi o maior e último delito do Dodge Dart. E a última vez que eu surrei um agente do estado antes de morrer com o rosto estourado por um tiro de escopeta.


- Palhares, por favor, dê informações da situação da diligência, copiou?
- ...
- Palhares, aqui é a central. Correu tudo bem? Precisamos enviar reforços?
- Rodrigues...
- Por favor, soldado, informe a situação exata aí nesse momento.
- Um Dodge dart...
- O que?
- Esses...vagabundos...nem tomaram conhecimento de nossas armas.
- Meu Deus, Palhares, o que aconteceu?
- Mande uma ambulancia pra mim. De preferência com um bom ortopedista. E pode trazer o carro funerário. O soldado Vasconcelos tombou. Aliás, partiu. Ao meio. 
- Santo Deus...
- A música, Rodrigues... a música é terrível. Deve ser realmente coisa do diabo. E se o diabo existe...ele deve ter um Dodge Dart igual a esse.





7.4.12

Corcel II

- Uma boa noite aos ouvintes da sua, da nossa Rádio Cidade Bela. Agora no comando da noite, eu, Sérgio Lourenço, a sua companhia das madrugadas em ondas curtas. São exatamente três e trinta de uma madrugada bela e fresca. É possível que o senhor e a senhora, encostados nessa insônia sintam o olor da Dama da Noite que inunda os jardins de nossa pacata cidade. E para você que nos acompanha do trabalho, de casa, da rua, com o coração feliz ou angustiado, nada melhor que uma bela canção para relaxar. Por favor, Amadeu, meu filho, toca aquela preciosidade que você separou para nós.

Sempre que se aproximava do posto abaixava o rádio. Nunca sabia se o cheiro de gasolina vinha de fora ou de dentro do carro. Diminuiu a velocidade e olhou para o banco de trás. O estofado rasgado, um galão vazio e uma mangueira muito utilizada para roubar gasolina de tanques alheios.

Encostou o Corcel II próximo a bomba de gasolina comum. Desligou o motor e saiu para fumar um Charm longo enquanto o Gordo colocava os mesmos quinze reais de gasolina de sempre.

- Tudo em ordem hoje, Charles?
- Tudo, como sempre, Gordo.

Abriu um botão da camisa de tergal vermelha, ajeitou no peito uma medalha de São Cosme e São Damião. Encostou-se no caminhão tanque e retirou do fundo do bolso um isqueiro Bic que combinava com sua camisa.

Sentia prazer em fumar no posto de gasolina.

De lá o Gordo gritou:

- Nem vou perguntar se quer que cheque o óleo ou lave o para-brisa.
- Isso gordo, fica calado.

Entregou o dinheiro levemente amassado, sorriu de forma cinica e arrancou com o velho Corcel II em direção a madrugada escura. 

Andou vinte quilometros sentindo vento bater no rosto. O único barulho que competia com o motor era o da lataria velha rangendo. A cada curva sentia os amortecedores implorarem por uma troca.

- E olha meu amigo ouvinte, minha amiga ouvinte, quem nos escreveu essa quarta-feira foi a Dona Maria Aparecida dos Santos lá do Canto da Obra. Ela manda um abraço para toda nossa equipe e pede que toquemos uma linda canção que a faz lembrar de sua juventude. Vocês vão reconhecer essa música, tenho certeza que já amaram muito ao som dela. E para você, Dona Maria, o abraço carinhoso do Sérgio Lourenço de toda equipe da Rádio Cidade Bela, a sua companhia na madrugada das ondas curtas.

Antes de entrar a esquerda, numa estrada de terra, abaixou novamente o rádio e ligou o farol alto. Uma das poucas coisas que ainda funcionavam no velho Corcel II.

Avistou a pequena casa em meio a escuridão. Amarela, com duas janelas ladeando uma varandinha singela que dava espaço para a porta da frente. Um suporte de plantas com uma samambaia, no chão um vaso de "comigo-ninguém-pode" dividindo espaço com espadas de São Jorge. Na porta estava colado um pequeno folheto da novena de São Judas tadeu.

Deixou o carro aberto. Antes de se dirigir a casa abriu o porta-malas e de lá retirou uma pesada bolsa de couro velha e surrada. Fechou. Observou que a noite era especialmente bela. Uma lua crescente decorava o céu e iluminava o silêncio que mal era pertubado pelos carros que passavam longe na estrada. Resolveu que havia ainda tempo para mais um cigarro. Pensou que um dia deveria se desfazer do velho Corcel II, que nada duraria para sempre, nem mesmo seu carro, companheiro de muitas madrugadas.

Se dirigiu a porta. estava aberta. A casa estava escura. Apenas um fio de luz parecia vir da área de serviço. Era possível ouvir um rádio baixinho. Ela estava ao lado do rádio, com seu vestido de flor. Lenço na cabeça, tradiocionalmente utilizado em noites que cuidava do cabelo usando seus velhos rolinhos. Parecia dormir ou orar.

Ele parou a dois metros de distancia. Foi quando ela sentiu sua presença.

- Você?

Ele permaneceu em silêncio. Deixou transparecer um sorriso, cínico como qualquer um que ele distribuia. 

Abriu a bolsa de couro em meio a casa mal iluminada. Era possível para ela apenas ver que ele havia retirado algo e erguera o braço em meio a penumbra. Deu dois passos a frente.

A voz dela exalava um desespero cansado.

- Não, por favor, o alicate de novo não, tem mais de uma semana que você vem aqui com esse alicate, eu não aguento mais!

O Corcel II nunca vira sangue no piso de ardósia.

- E então meus amigos e amigas, nada como o amor que toma conta dos corações dessa terra. Eu, Sérgio Lourenço tua voz amiga das madrugadas vou me despedindo mas claro, sempre com o compromisso de voltar, por que as madrugadas são dos amores mais sinceros e nobres. Sinta bem meu amigo e minha amiga, é o olor de Dama da Noite que percorre os cantos de nossa pacata e familiar cidade. Vou embora deixando uma canção belíssima e claro desejando que todos vocês fiquem na paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. E lembrem-se, esse programa é mais um oferecimento do Posto Caminho da Felicidade, a sua parada ideal nas noites de viagem. Um abraço!



3.4.12

2.4.12

desagradável poema

Ao Anderson Pires da Silva
“O poeta contemporâneo tem de ser perigoso como Dante foi perigoso; uma força respeitável frente às demais forças sociais”  Mario Faustino


não sou um poeta pós-utópico,
nem ao menos idólatra vil
da materialidade da linguagem,
de pesados livros de estética.

a poesia esotérica ficou
nos meus idos anos de espiação,
quando antes, havia sido surrado
pela concretude das palavras.

[alguns diriam que esvaziei a alma cedo]

nunca andei à margem que não fosse
a da linha férrea do subúrbio,
onde a poesia proibida, nascia
em bocas mudas e olhos fechados.

[vem daí a libertação da alma pelo samba]

§ onde parece que nada sobrou, restou um caminho.

uma trilha de sombras e riscos,
onde a esfera da experiência
conjuga-se no dar vida a vida,
deixá-la ser capturada pelo
imenso abismo da linguagem.

dentro dessa rapinagem, afoita
estranha, dolorosa e envaidecida
tudo será enorme e arriscado.
um jogo sem volta onde esse ser
: poesia! tem vida e vontade própria

resta - e não é pouco - abrandar
o sufoco, e centrar-se no lodo
escorregadio mas permissivo,
de ser perigo, surpresa, susto,
inquietação, rude assombro.