28.6.12

gênese


E foi no quinto dia útil – dia de pagamento que não saiu – que Deus, sem poder sair de casa fez o mundo.  Caçoou das alturas que desenham o Vale do Paraibuna e abriu trilhas. Fez das encostas, morada. Das vielas, ponto de encontro.

Deus fez o homem sua imagem e semelhança: chinelos, bermuda, camiseta, boné, a pele preta - menos preta que a cor dos cabelos. E quis Deus que o homem não vivesse sozinho, padecendo da solidão de ouvir seu rádio e louvar apenas orixás e arquétipos masculinos. Sendo assim, ele permitiu que a polícia militar, na madrugada fria do Buraco do Olavo, retirasse através de bicudas na costela do homem, uma mulher. 

Para que esse homem se alimentasse e provesse sua prole, Deus permitiu a ele que vendesse CDs e DVDs piratas na avenida Getúlio Vargas e em suas ruas transversais. O mesmo Deus, onisciente, decidiu que faria vista grossa caso sua cria fosse dada a outras ilegalidades menos inocentes.

Desde então, o homem passou a viver sob a égide do “dai ao fiscal de posturas o que é do fiscal de posturas”. E o mandamento, epístola, jargão, caô, parábola, passou a valer para toda autoridade civil ou militar.

É no trespassado da ponte, que liga ao centro a zona leste, numa travessa discreta, dentro de um barraco de dois cômodos que ele guarda caixas de meias, sombrinhas, guarda-chuvas, bolsas femininas, bijuterias e uma gama de produtos fruto da desatenção alfandegária ou do trabalho barato dos chineses.

Deus colocou no paraíso de esgoto ao céu aberto uma árvore de frutas podres. Foi o que deu, mediante a contenção de recursos. E o diabo que apenas queria dormir todos os dias foi delatado como responsável pelo produto vencido e tornou-se cúmplice dos pretos do paraíso falido. Foi tocar piano na delegacia de Santa Terezinha.

Desde então rádios e jornais noticiaram a decadência do paraíso. Deus lavou as mãos, o Diabo morreu na última rebelião do CERESP.

E as crias, nascidas da cópula de dois irmãos, habitaram o resto do Vale do Paraibuna,  lavaram seus corpos e se tornaram brancos, lavaram suas mentes e se tornaram pessoas de bem. 

E nenhuma delas sabe, ou ousa saber,  que nas madrugadas frias da cidade, das vielas, das encostas, continuam arrancando de homens e mulheres outros homens e mulheres com bicudas nas costelas, tapas na cara e muitos tiros. 

Foi Deus que criou o silêncio do ardor da pele que apanha e a escuridão dos olhos cerrados.


14.6.12

dos quatro movimentos

movimento 1

crava forte o dente
no batente da porta,
rude estapeia a fé
entorta, verga, força.

chama de socar,
quarar saliva no pé.
douto, assombra
a trilha do calcanhar.


movimento 2

nos dedos, fios,
cabelo um punhado
lacerado, chora
cora o colo, rebenta

nega que aguenta,
faz de bebê, dá água
da palavra, um berro
belo lírico arregaço

movimento 3

esperneia, teme gozo
volumoso, mete verga
enxerga, ou não, fim.
sim é o que diz, senão.

deita com a santa,
assanha faz de puta
labuta é foda, fela,
cadela, cachorro, uivo.

movimento 4

sabe que depois existe
resiste, tampouco dó
do pó, a tatuagem
da sacanagem, missão

no tranco, explode
escorre amor, frouxa
nas coxas, lisas, brancas
ganha um rio de leite

choram agora, dois
depois se acorrentam
sutiã de cruel algema
aguenta:

-  hora de tudo de novo!




11.6.12

Lição

foi assim. aprendemos juntos a extrair corações vivos, pulsantes, de peitos quentes e acordados.

eu lhe oferecia facas e ferro quente para cauterizar. você sempre escolhia colheres.

nunca nos importamos com os restos. o sangue.

um dia, escrevi em teu peito nu, com o sangue, minhas iniciais. você se comoveu e deixou cair as pálpebras sobre os olhos tão lindos que me observavam. dormiu. e para não demolir a ideia de que eu sou intransigente, esperei teu mais profundo sono para colocar sua música predileta no toca-discos.

havia silêncio. apenas um leve assobio da janela entreaberta avisava que havia algo de vida do lado de fora.

aprendi que as doçuras só fazem sentido se forem usadas como ataduras para as maldades mais íntimas. que se lágrimas não nascem da felicidade das pequenas coisas, podem cair através das mais delicadas brutalidades.

brincar de dialética.

rabisquei versos no ritmo de tua respiração inquieta.


feito, circunscrito a calma
alma, um grito que foge
o peito.


desisti de cruzar rimas. fui cruzar pernas na cama quente habitada por ti. finita. mas quente.