6.3.12

antes e depois - II

*depois*

buscou quase cego, tateando a escuridão de cortinas, baixar o volume de um velho som estereo, na cômoda de frente a cama. em vão. tropeçou nos pares de sapato espalhados no chão. sentiu o peito quente e suado tocar o piso de tábuas corridas, frio, indiferente. ergue-se aos poucos apenas pelos braços, coçou a barba. sentiu que apenas um fio de luz penetrava pelo cortinado. o suficiente para deduzir que era dia. arrastou-se, pouco a pouco, como quem junta pedaços até conseguir encostar-se na parede. 

acendeu o último cigarro, torto. sentiu o peito chiar. omitiu-se na nuvem de fumaça; esconderijo predileto.

provavelmente o estereo ficou ligado por toda madrugada, quase no volume máximo. e mesmo assim dormiram.

Billie Holiday era um clichê em loop eterno.

I'm a fool to want you
To want a love that can't be true
A love that's there for others too

Ela se mexe na cama, dobra as pontas dos pés, e as estica tal qual fosse a bailarina do caos, uma prévia do exorcismo das câimbras. Gira o corpo, maltrata os lençóis. da cama, cai a garrafa vazia. rola até seus pés. quase vazia. 

um primeiro dos últimos goles possíveis em uma manhã. nunca o conhaque haveria de ser tão amargo.uma gota, talvez a última das que valha a pena, escorre pelo seu peito. impossível impedir. resignação.

I'm a fool to hold you
Such a fool to hold you
To seek a kiss not mine alone
To share a kiss that Devil has known

caminhou até o banheiro enquanto ela dormia como um bebê, apesar dos pés se retorcerem. precisava descobrir como amenizar as marcas de algema em seus pulsos. e criar coragem de desligar o estereo.

*antes*

atropelar um cordeiro, e deixar a sensação que a madrugada começaria como um ritual.errado, ainda que instintivo, ter ligado o limpador para tirar gotículas de sangue do para-brisa. um vidro rosa. uma madrugada cinza.

ela riu, de forma macabara. talvez mais da cara de susto que ele demonstrou. se calou diante os últimos gritos do bicho. grito de bicho. cheiro de pneu queimado. para seguir viagem, era necessário desamassar o para-choque, e um pedaço do paralama.

ela apena sorria. ele sem camisa. ela com os pés no painel. aniquilava a garrafa no bico. no silêncio da madrugada ouvia-se apenas o som da bolinha do dosador. 

voltou com as mãos e rosto sujo. ela o limpou singelamente com as mãos umedecidas com saliva. seu olhar agressivo e sarcástico deu lugar a uma expressão de cuidado e carinho. surpresa.

antes que pudesse pedir um beijo, coisa de homem que se comove, ela ligou novamente o rádio do carro, e rasgou seus ouvidos com a voz imperativa.

- vai. continue dirigindo. anda.

ligou o carro, obediente.

dobrou a esquerda no primeiro trevo e avistou a placa do hotel. neons de esperança, oscilando.

ela saiu antes dele, descalça e antes que ele completasse a frase, relembrar dos sapatos, ela sinalizou negativamente com as mãos sem nem olhar para trás. soltou os cabelos e olhou profunda, para a madrugada sem nome e sem cor. mexeu na bolsa.

taticamente, retornou em sua direção enquanto ele ainda fechava o carro. arrancou as algemas e jogou em seu peito.

dor.

- isso é pra você. aceite calado. e não me acorde antes de duas da tarde.



6 comments:

Anonymous said...

fica na estrada. em segredo.

Marilia da Costa said...

as algemas podem ser um belo símbolo do pedido de atenção. a timidez do personagem masculino, claramente expressa no primeiro "antes e depois" me deu a sensação de que o rumo seria o de submissão. interessante a personagem mudar o jeito de ser. e ao mesmo tempo entendi a osiclação de tempo (lá amanhecia, aqui madrugada) com algo de indefinição do próprio lirismo. enfim pitacos. beijos =)

autor said...

ah mas quando a marca é boa não precisa esconder.. (gosto de gente assim que dorme como criança)

beijo

Florbela said...

Olha, eu talvez seja a frequentadora mais antiga desse blog (sim, eu sou a mais atrevida também)é por isso que eu resguardo a identidade. :P

Mas me sinto a vontade para questionar algumas coisas: Marilia, não interpretei a ruptura de tempo do amanhacer com a madrugada como estratégia narrativa. Acho apenas um "truque". Por mais que os textos sejam "continuação" não me parecem que se obrigam a promover a "continuidade". Tempo e literatura são coisas diferentes.

Cassiana, é claro que as marcas boas não precisam ser escondidas. Mas me parece que as marcas nesse caso, ainda que representem experiência, vivência, e até mesmo prazer, tem sido utilziadas na maioria dos textos desse escritor como a metáfora da agressão a uma psiquê do personagem. Seja ele alterego ou não. Cicatrizes, arranhões e tatuagens; enfim, apenas uma posição de leitora. Não sei se o autor vai tratar disso um dia. Mas imagino que ele fale disso com alguém, e ísso que me mata de curiosidade...rs

enfim, já faleu bastante. beijos de sempre.

autor said...

"(...) caminhou até o banheiro enquanto ela dormia como um bebê, apesar dos pés se retorcerem. precisava descobrir como amenizar as marcas de algema em seus pulsos. e criar coragem de desligar o estereo."

entendi florbela, me ative mesmo ao final (gostei e achei curioso) vejo ela tranquila dormindo e ele preocupado em amenizar marcas e criar coragens..
(momento em que talvez o superego tenha invadido a cena, rs)

Marilia da Costa said...

Concordo com a Cassiana nesse aspecto e entendo a colocação dela, apesar de achar que a ação do superego me deixou em dúvida.