9.2.12

vestido branco - parte I


nunca gostara de buenos aires. poucas vezes se dispôs ir até a cidade se não fosse por compromissos familiares mais formais. depois que a avó morreu era mais que natural que se passassem alguns anos sem sequer lembrar-se da existência da cidade. alguns rejeitavam seu comportamento. blasé. indiferente. sistemático. e reiterava sempre que não via motivos para ir à cidade e se misturar a milhares de turistas ávidos em fazer valer seu dinheiro nas decadentes ruas da capital portenha.

para ele, todas as mulheres de buenos aires usavam vestido branco.

trabalhava em seu último livro, acordo prévio com a editora, daqueles que se assume sem saber como cumprir. amargava um término de namoro, o tabagismo exagerado, um quase alcoolismo. tornara-se cada vez mais anti-social, rejeitando telefonemas de amigos, visitas.

desde que sua avó morreu, e deixara o apartamento de palermo para ele como herança, nunca havia ido sequer verificar a situação do imóvel. confiava que a administradora estaria cuidando de tudo, que o porteiro boliviano estaria atento a qualquer movimentação, que a empregada paraguaia deveria estar limpando tudo e mantendo de pé o velho apartamento de dois cômodos e um dormitório, espremido entre os trechos mais cosmopolitas da cidade, palermo soho e palermo hollywood.
não restava alternativa de fuga. ir até buenos aires poderia ser a única possibilidade de terminar um livro sem ser incomodado e ao mesmo tempo contrariar todas as expectativas das pessoas que o cercavam. era isso. deixou o galeão com os termômetros registrando 34 graus.

a única parte da viagem realmente prazerosa era o procedimento de pouso. podia observar que em ezeiza ainda restavam belos campos verdes circundando o aeroporto. de resto, era tomado por uma aflição que percorria todo seu corpo.
desceu, passou pela imigração e tomou um táxi até palermo para se acomodar.

o apartamento era velho e pequeno. em todos os cantos restavam marcas de sentimentos que nada significavam a ele. em todos os cantos era possível ver a memorabilia da guerra das malvinas, onde o seu avô havia lutado. fotos em preto e branco, recortes de jornal, medalhas, panfletos emoldurados com palavras de motivação aos soldados. cartazes com palavras ofensivas em relação à coroa inglesa e a dama de ferro. nada daquilo significava muito para ele. assim como seu pai, que havia ido para o brasil ainda no meio da graduação, pouca identificação tinha com toda história portenha.

foi até a confiteria da rua, buscou algumas emapanadas e medialunas, comprou algumas gaseosas e chocolates em um kiosko no caminho. abasteceu a geladeira em tom minimalista. abriu as janelas para se livrar do calor do verão, ligou ventiladores, abriu o laptop e acendeu um cigarro para pensar por onde começar.
algumas horas e poucas linhas se passaram até que resolvesse andar um pouco pelas ruas do bairro. sem vontade de fazer algo objetivo subiu a scalabrini ortiz até a santa fé. era um longo trajeto. ria por dentro dos carros velhos portando senhoras distintas e decadentes, de nariz empinado. ao dobrar a esquina da santa fé, parou em um kiosko novamente para comprar mais alguns maços de marlboro. resolveu observar as manchetes dos jornais. as malvinas voltavam a ser o tema unificador da nação. achou graça, se poupava de entender a lógica política dos irmãos do sul. resolveu comprar um novo guia da cidade que contivesse uma versão atualizada das estações do metrô.
reparou na moça da banca de jornal.

pela primeira vez não era um velho tipicamente argentino. muito menos uma mulher tipicamente argentina. apenas uma moça baixa, de cabelos médios, levemente frisados, calça jeans, blusa branca e tênis all-star. ao longo do antebraço, uma tatuagem que dizia:

La verdad es esta: Yo doy mi todo.

olhou em seus olhos. mas ela não correspondeu. desistiu de identificar melhor aquela pessoa tão diferente. pagou pelo guia, e andou exaustivamente até a estação bulnes, onde pegou o subte até a estação catedral. passeou pela avenida de mayo e por volta das 20 horas parou para tomar algo em um resto-bar na calle piedras. pouco mais de meia noite pegou um taxi até a plaza cortázar para uma saideira.
voltou as  três da manhã, levemente bebâdo. achava que poderia ir andando para casa. errou uma série de ruas e levou quase um hora para chegar até o apartamento. irritado, ao chegar descobriu que não tinha lembrado de levar roupas de cama. adormeceu na sala, em um velho sofá empoeirado.

acordou as 9, com o sol fustigando seu rosto. levantou, lavou o rosto, ligou a máquina velha de café expresso, única coisa realmente atraente na casa, colocou algumas medialunas no forno elétrico, abriu o laptop e usou da ressaca e mau humor para continuar a escrever. a amargura parecia ser suficiente para si.
resolveu que deveria almoçar. caminhou novamente até a santa fé para pegar um subte até o centro. permanecia com a imagem da moça da banca em sua cabeça. ao passar por lá, não a encontrou. se aproximou e enfiou a cabeça dentro de um mínimo buraco entre as revistas e posteres pendurados. não havia ninguém lá dentro. quando se virou para ir embora, deu de cara com ela.

- hola, chico.

pense rápido. muito rápido. não faça cara de assustado. tentando reverter seu semblante babaca, fingiu interesse em uma revista. ela, sem esboçar maiores reações o entregou, cobrou e entregou o troco. saiu de lá ainda assustado e impressionado com sua atitude patética. no caminho em direção bulnes, confirmava sua tese. todas argentinas usam vestido branco. andou atordoado a ponto de se esquecer de descer em bulnes. teve que ir por aguero. antes disso, jogou na lata do lixo uma edição de verão novinha da time out.
almoçou no la nueva embajada. exagerou mais uma vez na quilmes. resolveu retornar de metrô pela mesma estação e passou novamente na banca. estimulado pelos goles, sem ao menos dar um olá, apontou para o braço da mulher, erguendo as sobrancelhas. ela fez cara de quem não entendia.

- el tatuaje

ela sorriu discretamente enquanto carregava pilhas de jornais e revistas. colocou os produtos de lado, ajeitou uma prancheta no balcão. apoiou o pé sobre a caixa de souvenirs, enxugou o suor da testa. reticente o olhou dos pés a cabeça. com um grau de desprezo emendou.

- cortázar.

sim, como um escritor imbecil como eu não reconheceria uma citação a cortázar. é óbvio que ela nem desconfia quem sou eu. por que eu fiz essa pergunta. ele ainda sorriu com quem agradece e seu único recurso foi entrar no kiosko de frente a banca. lá dentro, como se raciocinasse, escolheu alguns chocolates, uma gaseosa de pomello, e pagou. antes, reparou que a balconista também usava um vestido branco. respirou fundo, saiu direto a banca.


- acepta tomar algo esta noche?
ela gargalhou. puxou a caixa onde outrora apoiara o pé e acendeu um lucky strike.
- Los brasileños son descarados.
ele estava certo que deveria pedir desculpas, fugir correndo, arrumar as malas e nunca mais voltar a essa cidade que o fazia sentir tão patético. antes disso, ela emendou.

- escríbalo aquí donde usted se encuentre. puede ser las once?

feito. foi para o apartamento de palermo ainda sem entender de onde tinha tirado a estúpida idéia de cair de joelhos por uma argentina desconhecida. foda-se. aproveitou as horas restantes para escrever. desinteressante. era assim mesmo que considerava seu trabalho.

às onze em ponto o interfone do apartamento tocou. lembrou que havia colocado seu nome no papel com o endereço mas não havia sequer perguntado a ela como se chamava. desceu e trouxe a tiracolo um exemplar de seu último livro para presenteá-la. ela vestia calça jeans black, coturnos de cano médio e uma blusa branca da banda A.N.I.M.A.L, que deixava aparecer o ombro e a alça do sutiã. cumprimentaram-se com dois beijos.

- Olá, Guilherme, tudo bem?
- Você fala português?
- Sim, aprendi quando adolescente. Para ler João Cabral de Melo Neto.
- Me desculpe, não sei seu nome ainda.
- Gabriela. Meus pais sempre gostaram de Jorge Amado.
-Fico feliz que goste de literatura. Sou escritor, gostaria de presenteá-la com meu último livro.

merda. que diabos estou dizendo. que tipo de idiota diz isso para uma mulher.

Ela sorriu, olhou de relance para a capa e guardou na bolsa. desprezo. mais uma vez. ele sentiu o rosto esquentar de tal forma que sabia que ela perceberia. mas fingiu não se importar.

andaram até a corrientes onde pegaram um ônibus em sentido a san telmo. deixou que ela escolhesse um lugar para os dois beberem. chegaram no bairro boêmio e ela indicou o caminho até um casarão velho e decrépito. a placa indicava el boliche de daniel. acomodaram-se em uma pequena mesa para dois. ao fundo do lugar, dois guitarristas tocavam canções de tango, irreconheciveis para ele.

ele pediu cerveja. ela um porrón de sangria.

- então você é escritor?
- sim. e você parece não ser muito adepta da nova literatura brasileira...

ela gargalhou mais uma vez.

- e existe velha e nova literatura, chico?
- por que não? gerações, estilos, mudanças. talvez não só de arbitrariedades vivam as classificações literárias.
- hum, belas palavras. então por essa lógica, eu não me interesso pela nova literatura brasileira.

o clima de tensão entre os dois era até agradável. permeado por um interesse que aparentava ser mútuo.  ele tinha 32, ela 28. se vestia de forma casual. não usava maquiagem, o cabelo parecia propositalmente desarrumado. mas tinhas lábios bonitos, olhos grandes, e era possível perceber que havia uma tatuagem na nuca, apontando ao lado do pescoço.

ele pouco tinha a complementar sobre os conhecimentos que ela tinha sobre a literatura brasileira. ele pouco conhecia a literatura argentina. conhecia um pouco de música. mas a cada colocação dele e resposta dela, ele se sentia o mais babaca dos turistas.
por volta das duas da manhã, chegou ao local um grupo de jovens. multiplos. indies, hipsters, hippies. todos barulhentos. ela levantou-se, cumprimentou todos, conversaram em um espanhol portenho rápido e incompreensível. ele mais uma vez se sentia um babaca.

antes que ele pudesse fingir que ia ao banheiro ela o puxou, e o levou para dançar junto de seus amigos. não era bem capaz de entender qual era jogo dela. desconhecidos, estranhos. mas a sua forma, ela o tratava com um grau de carinho.a milonga se estendeu até as cinco da manhã. ele sentia-se levemente embriagado, ela apesar de muitas taças de sangria parecia estar de pé, firme. antes que ele pensasse em sugerir ir embora, ela pagou a conta e o puxou pelo braço pelas ruas de san telmo. a madrugada era quente e tornava ainda mais estranho o abiente. ruas sujas, prédios aparentemente abandonados, poucas pessoas nas ruas.
- vamos pegar um táxi.
- sim.
- olha, gabriela, eu queria dizer...

ela o interrompeu pousando o indicador em seus lábios. gargalhou como das outras vezes que ele ficara irritado. o pegou pela nuca e o beijou. antes que el pudesse retomar o folêgo, estavam no apartamento de palermo.


3 comments:

Rachel said...

maravilha. coloca a parte 2 looogo! :P

Anonymous said...

looogo![2]

dida said...

tô adorando! =)