2.2.11

Ninguém falou



Passava boa parte das suas horas sentada num dos bancos ao lado do Fórum Benjamin Colucci, no Parque Halfeld. Aparentava pouco mais de 50 anos, trajando roupas velhas mas sempre curtas, com decotes. Brincos grandes, batom vermelho. Nunca a vi magra.

Ao lado, sempre uma sacola de supermercado, em cima das pernas a bolsa de couro vermelha. Sempre o mesmo olhar, artificial aos velhos que passavam a encarar. Um pálido sorriso, um olhar, ainda que gélido, revelando a natureza de quem encara a vida. Era um sorriso de resignação.

O horário era disciplinado, tanto para chegar quanto para sair. Afinal em casa deixava família - nunca soube de marido - mas filhos existiam. Isso soube num dia que a vi com um desses pequenos albuns de fotografia, retirados da bolsa vermelha, e exibidos com orgulho para as outras, que assim como ela, passavam as tardes ali.

- Ta vendo? Esse é meu caçula. Essa aqui é a mais velha, já tá com 18 anos...

As poucas vezes que resolvi tomar café na Padaria Nacional encontrava com ela, tomando uma média. Discretamente pagava com algumas moedas, comprava um cigarro a varejo com o troco, acendia ali mesmo no caixa

- Mais alguma coisa, Dona Lúcia?

A resposta era sempre em voz baixa, enquanto soprava a fumaça do primeiro trago.

- Não meu filho, obrigado...

Eu olhava para o senhor do caixa, ele sempre dava um sorriso de canto, e apontava para ela, com as sobrancelhas, como quem diz algo. Eu nunca entendi. Mas poderia subentender que todos sabiam mais que eu sobre ela.

E provavelmente voltava para seu banco, com sua sacola, sua bolsa. Suas roupas velhas, curtas e decotadas. Suas pernas marcadas, cicatrizes, as varizes. A pele queimada de sol. O cabelo de uma cor que nunca saberia identificar.

Era Dona Lucia e suas amigas a sentar o dia inteiro nos bancos em frente o fórum, enquanto circulavam advogados, culpados, inocentes, vítimas, intimados, vendedores de picolé, catadores de papel.

Eu sempre passava por lá, a identificava e nunca tive sequer coragem de olhar em seus olhos.

Na semana passada minhas férias foram interrompidas por questões de trabalho, mais precisamente pela morte do pai de um colega de trabalho. Fui ao cemitério consolar o amigo e ajudar a velar o corpo, apesar de não ser muito afeito a essas coisas.

Na capela ao lado me chamou a atenção uma cena. Uma moça de aparentemente 18 anos sentada numa cadeira do lado trazia no colo uma criança, com semblante estático. Olhos parados. Rosto pétreo.

Em alguns minutos uma confusão se formou. Um repórter de um canal local tentou se aproximar e fazer contato mas logo foi impedido. Curioso, me aproximei para checar o que acontecia e pude reconhecer Dona Lúcia, ali no caixão.

O lado esquerdo da sua face estava totalmente inchado e tomado por hematomas. Do nariz, um pequeno dreno saía, e tornava ainda mais triste aquela cena. Saí de lá, assustado, impressionado com a cena que acabara de ver. Pude ainda ouvir alguns comentários, onde pude distinguir as palavras "hotel", "parque Halfeld", "suspeito" e nada mais.

No dia seguinte as suas companheiras ainda estavam lá, no mesmo banco, lado a lado com os mesmos personagens. A TV não falou nada. Os jornais não falaram nada.

A cidade, aliás, nunca falou nada sobre nenhuma daquelas mulheres, quem eram, ou o que faziam.

Nem eu falei.

3 comments:

Laura Assis said...

Lembro muito de ver essas mulheres paradas ali e não entender. Ninguém falava nada, eu também nunca falei.

Você disse no Twitter que era um texto, crônica... eu acho que é um grande conto, com duas histórias: a Dona Lucia e o silêncio.

said...

Ah! Juiz de Fora, que falta você me faz. Sua crônica mesmo que com o pano de fundo dessa história, me lembrar da minha terra que já não habito mais. Nostalgia demais.
Curti demais o texto e o silêncio que paira sobre as coisas do cotidiano.

Sobre Elza, também assisti em Tiradentes. Compartilhamos da mesma plateia.


Obrigada pela visita viu?

Bruno Borsatto said...

Cra otimo post