16.4.12

Dodge Dart

- Atenção patrulha 0632, aqui é a central, Rodrigues no rádio. Quem me copia?
- Palhares na escuta, central. Prossiga.
- Descendo a avenida principal com faróis baixos e amortecedores rebaixados um veículo Dodge Dart sem placa e de pintura preta. Dentro do veículo encontram-se quatro individuos suspeitos, todos sem camisa, cabeça raspada e ouvindo uma música assustadora. Olha, Palhares eu tenho filho adolescente e posso dizer, tem jeito de ser um bando de emaconhados adoradores do diabo. Copiou?
- Positivo, central. Já estamos alterando a nossa rota para cruzar com esses arruaceiros. Pode confirmar a diligência. Copiou?
- Positivo, bravo soldado. Servir e proteger. Desligo.


Sempre que voltavamos da diversão noturna desciamos a avenida principal daquela cidade de merda ao som de Korzus. Isso aconteceu antes que Lorraine morresse; antes que meu Dodge Dart virasse sucata na mão de policiais corruptos; antes mesmo que eu morresse. 

Diversão noturna: o eufemismo que usavamos para explicar a surra que davamos nos playboys do bairro da Casa Alta ao menos duas vezes por semana. No início eles nos encaravam. Depois de um ano quando o Dodge Dart preto apontava na esquina era divertido ver a disputa das bonequinhas para ver quem conseguia correr primeiro. Alguns se mijavam.

O Dodge Dart eu comprei com meu fundo de garantia, quando fui demitido da gráfica após esbofetear o chefe da seção que se negou a me deixar assinar meu ponto corretamente. A justa causa virou acordo. Eu ainda tinha muita porrada guardada para meus superiores.

Infelizmente o dinheiro nunca permitiu que eu pudesse pintar meu carro em um lanterneiro. Mas com a grana que sobrou comprei uma bomba de flit e um rolo de tinta, além dos galões de tinta especiais. Passamos muitos domingos pintando o velho carro. Camada a camada de tinta, cirurgicamente depositada sobre o manto de durepox que consertava as imperfeições da lataria.

Na feira de domingo comprei por uma bagatela um toca-fitas japonês. Roubado, claro.

Meu nome não interessa. As pessoas me conheceram pelo apelido: Carca. Desde criança me chamam assim. E nas noites de litigio profundo da moral, eu, Milha, Porco e Vica habitavamos o Dodge Dart com nossos sonhos que rapidamente se traduziam em pesadelos alheios.

Eu morri depois de Lorraine. E Lorraine nunca andou no Dodge Dart. Eu acho que a amei desde a época que ela ainda se chamava João Carlos e éramos crianças. Mas nunca poderia suportar viver assim. Eu, surrando moleques folgados pela noite. Ela, vendendo o corpo nas ruas paralelas às que eu fazia escorrer sangue.

Eu matei Lorraine. Por vergonha de amá-la. E isso ninguém nunca soube e nem saberá, só agora que eu confesso em forma de uma prosa imbecil o meu crime. E até hoje suspeito que foi por vingança que aquele homem invadiu minha casa e atirou em mim no banho com uma 12. Minha mãe até hoje lamenta que por causa disso meu queixo alinhou-se a nuca. E velório não tivemos.

Eu pensava nela e no meu inexorável destino de ser vítima de mim mesmo enquanto dirigia e trocava fitas no som auto-reverse. Nesse dia, Milha estava pensativo e fazia perguntas estúpidas. Eu pedi que ele se calasse e permitisse que nós vivenciassemos o tédio da madrugada.

Foi num dia 21 de junho, frio e triste, que uma patrulha da Polícia MIlitar mandou que encostassemos. Nunca cederiamos. Esse foi o maior e último delito do Dodge Dart. E a última vez que eu surrei um agente do estado antes de morrer com o rosto estourado por um tiro de escopeta.


- Palhares, por favor, dê informações da situação da diligência, copiou?
- ...
- Palhares, aqui é a central. Correu tudo bem? Precisamos enviar reforços?
- Rodrigues...
- Por favor, soldado, informe a situação exata aí nesse momento.
- Um Dodge dart...
- O que?
- Esses...vagabundos...nem tomaram conhecimento de nossas armas.
- Meu Deus, Palhares, o que aconteceu?
- Mande uma ambulancia pra mim. De preferência com um bom ortopedista. E pode trazer o carro funerário. O soldado Vasconcelos tombou. Aliás, partiu. Ao meio. 
- Santo Deus...
- A música, Rodrigues... a música é terrível. Deve ser realmente coisa do diabo. E se o diabo existe...ele deve ter um Dodge Dart igual a esse.





3 comments:

Luiz Felipe Vieira said...

macabro, visceral. que venham mais carros.

Dudu Costa said...

Caralho, mermão!!! Foda!

Kadu Mauad said...

HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!