26.2.12

vestido branco - final (+18)


O homem gordo e de bigode falava pausadamente com um sotaque que não parecia portenho. De minuto em minuto ajeitava os pesados óculos velhos que lhe davam um ar vintage. Parecia um personagem saído dos anos 70.
“a crítica literária em toda América e em muitos casos na Europa tem sido tomada pelo mesmo espírito infantil que queria que ela desaparecesse. Se por um lado, há tempos, pós-modernos clamavam pelo fim da crítica alegando que a mesma não poderia sobreviver se apoiando em conceitos, hoje o que vemos é um discurso relativista mas apoiado tão somente em conceitos. Veja o caso da crítica a Cortázar, muito comum em meios acadêmicos. Se apóia  em argumentos que não se sustentam. A própria crítica os ratifica sem perceber. Mas sejamos justos, exigir que a crítica literária seja precisa ou isenta é esquecer que hoje ela serve apenas aos interesses das editoras que não tem onde mais garantir a qualidade de seus novos quadros que não seja na validação e status quo da crítica em cadernos literários de jornais que só uma parcela da população lê. E claro, a ganância academicista. Para preencher currículos, ganhar amizades e poder, a crítica literária acadêmica insiste no discurso da refutação.”
Guilherme achava o discurso contundente do gordo um tanto quanto enfadonho. Advogava internamente em causa própria ao recebê-lo assim.

As pessoas na roda teceram comentários mais curtos, citaram passagens de livros de autores argentinos, uruguaios e brasileiros. Leram trechos de críticas em jornais e sites da América do Sul. Gabriela observava a conversa com um sorriso doce no rosto. Olhos em posição de reflexão e atenção.

Movimentava as sobrancelhas para demonstrar algum tipo de sentimento a mais. Terminada a rodada, indagou a ele, se não gostaria de dizer algo.

- É, eu gostaria apenas de agradecer pela possibilidade de estar aqui nessa tarde por acaso, e dizer que a experiência é muito rica, esse intercambio, é, entre, através,é, dos diversos olhares que temos da literatura, enfim... é isso.

Gabriela observava cada palavra dele com ar de descrença. Sorria cinicamente como se fosse capaz de refutar até mesmo o mero comentário formal de agradecimento dele.

Levantou-se e com os braços abertos encerrou o encontro, dizendo que o próximo seria marcado através de uma lista de emails.

Guilherme levantou-se em seguida, ajeitando a gola da camisa no intuito de respirar melhor. Depois dessa ampla experiência de constrangimento parecia suar mesmo debaixo do ar condicionado potente de El Ateneo.

As pessoas aos poucos foram se dirigindo à saída da livraria. Ele timidamente acompanhou.

A moça que deitara a cabeça no ombro de Gabriela era um típica portenha. Usava um vestido branco curto e relativamente transparente, chinelos Havaianas. Cabelos longos e frizados, e um – aos olhos de Guilherme – detestável rabo de cavalo de lado, uma espécie de obsessão das mulheres comuns de Buenos Aires. Magra, bonita, com as maçãs do rosto avermelhadas pelo sol, nariz alongado, olhos verdes. Uma mulher encantadora.

As duas se falavam frente a frente enquanto Guilherme se aproximava e quando ele pensou em se pronunciar, talvez dizer que iria embora, que foi um prazer te rever, as duas se abraçaram, trocaram palavras – era impossível compreender o que elas diziam pois estavam discorrendo um espanhol carregado na chamuya.

Ele parou a fim de evitar interromper uma conversa tão próxima.

As duas cessaram a conversa, sorriram, e se despediram com um leve, porém lento beijo nos lábios.
Guilherme ficou imóvel.

Gabriela observou a mulher ir embora lentamente e enfim, virou-se a ele.

- Hei, Chico!
- Olá, Gabriela.
- Me diga como está e por que voltou tão cedo à cidade? Confesso que estou surpresa.
- Problemas a resolver , relativos ao livro.
- Hum.
-Me diga, como você está?
-Vem que te conto.

Ela puxou-o pelo braço e ele reparou a tatuagem do pescoço. Letras simples e pequenas, caixa alta, com a expressão “Amantes Clandestinos”. Surpreso, deixou-se levar pelo braço, na certeza de que poderia estar sendo conduzido mais uma vez ao fundo de sua alma.
Saíram sentindo o bafo quente do calor. Ela ainda não soltara seu braço. Andaram um bom tempo pela Callao em silêncio. Ele observava seu cabelo, curto, estranhamente curto. Sentia uma mistura de acolhimento e pavor lhe percorrer a alma, mas era incapaz de dizer qualquer coisa.

- Que tal caminharmos um pouco e comermos alguma coisa?
- Pra mim, está ótimo.
- Ao Tortoni?
- Sim.

Andaram por cerca de 40 minutos. Desceram a Callao até encontrar a Corrientes. Lá ele observou a
movimentação dos teatros e cinemas, ela contou histórias de espetáculos que ali teria assistido. Sorriu muitas vezes, parecia bem.

Dobraram a Cerrito, próximo a Plaza de La Republica.

- Gabriela, essa tatuagem nova...
- Bonita, não é? Feita as pressas, mas bonita...

Dizia isso rindo.

- Sim, mas é que você...

Em um movimento súbito ela parou. Virou-se na direção dele, o pegou pelos dois braços, o encostou no poste mais próximo e olhou em seus olhos, dizendo em tom áspero, porém com um sorriso no rosto:

-
Uno
va internándose
en la fatiga horizontal que llega
a seducir los huesos
y el silencio
como si fuesen huéspedes fugaces
o amantes clandestinos.
Y un día
nos sorprende descubrirnos
dueños de una morada
abierta a la intemperie de toda soledad.
Vamos tendiéndonos
junto a nuestra sombra arropándonos con ella.
Hay un cambio de piel
que nos desnuda.
Y la fatiga invade.
Murmura otros idiomas
que no son extranjeros pero emplean
sin voz
otras palabras.
Para no herirnos.
Para no decirnos que hemos comenzado
a habitar el adiós
.

Guilherme permanecia quieto, imóvel. Hipnotizado pela voz e pelo poema.

- Ana Emilia Lahitte, Amantes Clandestinos.

Piscou e soltou seus braços.

- E o que significa para você?
- Uma cicatriz da última queda do trem.

Rapidamente estavam na Avenida de Mayo. Notava-se o dia se encerrando, pessoas saindo dos escritórios, trânsito intenso, e as mesas dos cafés se enchendo.

Chegaram ao Tortoni e se acomodaram. Ele pediu um refresco e um Hamburguesa. Ela, café latte e medialunas.

Por cerca de uma hora conversaram. Primeiro ele explicou com detalhes a situação do livro. Ela achou graça. Depois ele questionou o repentino desaparecimento dela, imprevisível mediante a tarde agradável do dia anterior. Ela disse coisas e mais coisas sobre a necessidade de submergir quando a superfície parece insólita. Tentou deixar claro que pouco havia relação com ele. Era uma decisão mais que tomada há tempos e que portanto não deveria ser tomada como um desleixo. Ele questionou por que não avisá-lo. Ela sorriu, disse que não deveria avisá-lo de cada passo. Mas que o bilhete era uma clara exceção de carinho e que ele deveria aceitar dessa forma. “E por que não um convite prévio, planejado? Por que eu acho que na verdade não queria você lá”. A conversa fluía tranqüila mas com sobressaltos. 

Guilherme sentia-se satisfeito com tanta sinceridade mas ao mesmo tempo incomodado com a despreocupação dela. O desprendimento. Perguntou pela banca e ela deu respostas evasivas sobre sua saída de lá, e explicou de forma muito metafórica o que seria seu novo trabalho.

- E a garota da livraria?

A expressão de Gabriela tornou-se menos alegre, porém não menos terna.

- É uma pessoa muito especial, eu diria que foi um grande amor. Chama-se Clara.
- Mas você viajou para vê-la?
- Não interessa.
- Vocês estão namorando?
-Também não interessa.

Ele, encostou-se novamente na cadeira, com a sensação de que não deveria insistir em perguntas desse tipo. Bebeu um ultimo gole de refresco. Olhou ao redor, percebeu os turistas, a movimentação.

- Ok. Vamos embora? Estou louco para fumar.

Caminharam fumando pela Avenida de Mayo. Alternando conversas triviais e momentos de silêncio. 

Pararam para ver por alguns minutos a apresentação de um artista de rua, na esquina com a Esmeralda. Algo muito próximo do folk, cantado em espanhol.

Caminharam um pouco mais até a Plaza de Mayo e mais uma vez ficaram frente a frente.

- Então, Gabriela, feliz em te ver. Mas tenho que ir para o apartamento. Amanhã gostaria de acordar cedo para tentar resolver essa situação.
- Vá ao seu apartamento, mude a data do vôo. Dificilmente você terá tempo hábil para resolver isso, tendo em vista o piquete. Tome um banho, relaxe, depois vá até o meu apartamento. Ficaria feliz em ter sua companhia.

Ele, mais uma vez se negou a tentar argumentar ou resistir.

- Por que não vai até o meu apartamento você? Já conhece o caminho....
- Não. Não gostei de lá.

Ela anotou o endereço e sumiu em direção ao subte. Ele pegou um táxi e rapidamente estava em Palermo.

Deitado na cama com o laptop no colo, Guilherme pensava o que fazer. Já havia conectado o smartphone ao PC para usá-lo como modem e navegava, ainda que com dificuldade. Trocou a data do retorno para daqui há cinco dias como quem compra uma passagem para o inferno.

Tomou um banho e por volta das dez da noite estava já em um táxi rumo ao apartamento de Gabriela.

O apartamento ficava em um pequeno prédio residencial em Colegiales, na Frederico Lacroze. 

Aparentemente um prédio dos anos sessenta, não muito bem conservado. Não havia porteiro e na entrada três gatos se enroscavam enquanto revezavam um pequeno porte de ração deixado por alguma alma boa. Os interfones ficavam dentro e eram alcançados com um pouco de esforço. Tocou errado duas vezes, devido a escuridão.

Subiu três lances de escada e ao fim do corredor aos poucos a luz que saia do apartamento indicava o caminho com maior facilidade. Gabriela o recebeu de short, uma camiseta branca e velha da banda The Cult. Descalça. Cabelos molhados. Parecia extremamente linda.

- Hola, Chico!

Ela o beijou no rosto e o conduziu ao interior do apartamento. Quarto, sala, uma cozinha pequena, área de serviço e banheiro. Na sala, um sofá velho dividia espaço com duas estantes abarrotadas de livros, um aparelho de som enorme e uma mesa cheia de papeis, com duas cadeiras. No canto haviam caixas, muitas. Aparentemente uma mudança que mal havia sido desfeita. Dali era possível ver que a cozinha tinha um fogão, armários embutidos e alguns utensílios delicadamente pendurados numa estante de canecas de todos os tipos.

- Sente-se, me perdoe a bagunça.
- Não se preocupe.
- Escolhe uma música pra gente.

Em meio aos discos ele só foi capaz de reconhecer Piazzolla. Resumiu a decisão dessa forma.

Tomaram algumas garrafas de Del Fin Del Mundo, jantaram milanesas e ensaladas, que Gabriela havia comprado num restaurante de sua predileção.

Levemente tontos, pareciam mais a vontade. Conversaram sobre inúmeras questões da vida. Ela a todo momento o provocava com suas alfinetadas doces sobre sua obra e a nueva geracion de escritores brasileiros. Ele, relevava, sentia-se confortável e tranqüilo.

Ela deitou-se no sofá e colocou os pés sobre ele. Lindos pés, claros, desenhados, delicados. Ele relutou em tocá-los. Observava seu rosto. Avermelhado pelo vinho. Ela o olhava atentamente Em silêncio ficaram. O cabelo ainda mais curto deixava seu rosto mais evidente. O olhar que o anestesiava era ainda mais direto e duro.

Ela percebia seu desconcerto e esboçava um sorriso, sempre.

Gabriela levantou-se do sofá, como de praxe, sem maiores cerimônias o puxou pelos braços e o conduziu até o quarto. Acendeu a luz. Era um quarto pequeno, apenas com uma cama de casal, mesa de cabeceira e um armário.

Jogou-o na cama e em seguida se colocou por cima dele. Beijaram-se por alguns minutos. Ele a tocou e deixou que ela o tocasse. Tiraram as roupas. Ela parecia mais linda do que nunca. Ficou de pé por uns segundos pois sabia que ele a observava. Caminhou em sua direção e o beijou, descendo lentamente com os lábios pelo seu corpo até chupá-lo intensamente. Apertava suas coxas e fazias movimentos fortes com a boca, permitindo que seu pênis tocasse sua garganta. Percebia que quase sufocava. Seu pescoço e rostos vermelhos denunciavam os momentos de falta de ar. Sua jugular saltava.

Ela apertou seu peito, com força, o arranhando.  Ela movimentava o corpo, lascivamente. Queria sair daquela posição extremamente excitante a fim de evitar gozar já naquele momento. Mas ela não permitiu. Ele sentiu jorrar forte. Surpreendeu-se, mas não teve forças, recostou-se. Enxugou algumas gotas de suor que haviam no rosto.

Ela por sua vez levantou-se e sorriu. Saiu do quarto e voltou. Sentou-se na cama de frente para ele, abraçando os joelhos. Ele sem reação permaneceu mudo.

Reiniciaram. Ela, como da primeira vez sentou-se em seu rosto e comandou tudo. Ele tentava coordenar a própria língua mas era impossível Sentia que ela estava molhada. Porém não conseguia definir seus caminhos. Ela o beijou mais uma vez e o tocou. Estava pronto. Desta vez ela o entregou a camisinha.

Quando ele mal terminara de a colocar, foi deitado de bruços de forma brusca. Aceitou. Não haveria mais limites a serem respeitados. Ali era o espaço onde ele não poderia esboçar reações a qualquer coisa que fugia dos sexo careta com que foi acostumado no eixo Rio-São Paulo.

Ela o chupou por trás intensamente. Uma experiência nova que a primeira vista poderia ser estranha. Mas foi prazerosa. Ela levou as mãos aos cabelos dele. Tocou, acariciou. E por fim, puxou forte arqueando sua coluna.

Ele sentia que nuca doía. Uma incomoda posição com a coluna dobrada. Sentia-se ridículo. Mas seguro.

Ela o beijou no rosto e falou em seu ouvido:

- Não se preocupe com nada, Chico.

Antes que ele pudesse interpretar a frase como um eventual gesto de carinho, sentiu um tranco no pescoço. O cheiro de couro. Tentou abaixar os olhos para entender, mas sentiu a pele queimar enquanto os ouvidos identificavam um som estranho. Em poucos segundos aquilo estava em seu pescoço e perceberam que estava sendo levemente sufocado. Ergueu uma mão, mas não tinha forças. Sentia que uma mão dela o acariciava por trás, enquanto a outra o sufocava com alguma coisa que El não identificara. Tentou dizer algo, mas a vista ficou turva e sentiu que iria desmaiar. Antes disso sentiu que ela o aliviara. Estava livre. Desesperadamente ficou de barriga para cima no intuito de retomar o ar. Ela sorria. Ele tinha uma ereção. Percebeu que foi sufocado por um cinto. Sentia-se desprotegido.

Pensou em perguntar o que era aquilo, mas ante disso Gabriela mais uma vez subiu em seu corpo e cavalgou forte, até que gozaram juntos.

Ainda não tinha forças para falar. Não tinha nada em mente para conversar mediante aquela experiência. 

Docemente violado e sufocado.

Adormeceu. Ouviu apenas o barulho do isqueiro dela, e sentiu um cheiro de cigarro.

Acordou com o barulho da rua às oito da manhã, sozinho na cama. Percebeu que ela estava acordada.

Levantou-se da cama e procurou um espelho no armário. Notara uma marca vermelha, forte no pescoço.

Antes de fechar a porta, observou suas roupas, cuidadosamente acomodadas, apesar de poucas.

- Ela não tem nenhum vestido branco. Vai entender...

Vestiu-se  e caminhou até a sala. Gabriela lia o La Nacion. Havia café e medialunas na mesa, além de algumas empanadas.

- hola, Chico!
- Olá.
- Dormiu bem?
- Sim, muito. Gabriela, olha, essa coisa do meu pesco..
- Então, tenho que resolver algumas coisas, se importa se sairmos assim tão cedo?
- Não. Tudo bem.

Tomaram o café em silêncio. Ela sorria, parecia que pensava em algo quando o olhava. Ele, resignado, tentava apenas viver aquele momento, depois de uma noite engimática.

Desceram as escadas do prédio de Colegiales. Lá fora, um belo e agitado dia.

Estava ele mais uma vez diante Gabriela. Disposto a dizer qualquer coisa que garantisse a continuidade daquela história.

- Gabriela, eu pensei muito naquilo que você me disse sobre o trem. Eu passei alguns dia no Rio e tive justamente essa sensação de que passo a vida a pular de vagão em vagão, e nunca tive certeza de que esse trem me leva para algum lugar.

- É. E isso não mudou, chico.
- Por que acha?
- Por que você veio aqui buscar teu livro. Garantir tua permanência em uma zona de conforto.
- Talvez.
- Olha, vou fazer minhas coisas. Se achar que deve, me procura.
- Ok.

E Gabriela foi embora.

Ele resolveu caminhar até Palermo, para ter tempo de pensar. Mas nada muito lógico parecia se articular em sua cabeça. Buscou a documentação e foi até o correio tentar mais uma vez retirar sua encomenda.

Na porta da agencia não havia maiores movimentações e o local parecia funcionar ainda que de forma precária. Entrou e depois de muito tempo de argumentação e de ter que quase implorar ao líder dos piqueteros  conseguiu reaver sua encomenda. Simples. Para seu espanto.

Seguiu para o apartamento de Palermo em um táxi e passou o resto do dia escrevendo e refletindo sobre os acontecimentos do último dia. Sabia que pouco teria como mudar algum rumo na sua vida, ainda que mínimo. Tomou alguns comprimidos e deitou-se as nove horas da noite. Acordou meio dia, com uma sensação enorme de ressaca.

Não havia o que mudar, mas não se permitira mais evitar o contato. Estava disposto ao menos de ter Gabriela na medida possível. Aceitar os riscos de ser tocado como nunca, de se aventurar de forma que até mesmo sua integridade física e emocional pudesse ser abalada. Ainda que isso lhe custasse atordoar ainda mais sua existência no Brasil.

Caminhou até o restaurante mais próximo por volta de duas horas e almoçou. De lá seguiu até Colegiales, disposto a estar com Gabriela pelo menos mais uma vez naquela estada em Buenos Aires.

Enquanto cruzava a Zapiola, acendia um cigarro após o outro. E tentava buscar palavras que lhe permitissem fazer entender-se.

Tocou o interfone. Não obteve resposta. Insistiu, mas parecia inútil. Aguardou alguns minutos. Uma moradora saía, e ele aproveitou para subir.

Na porta, um pequeno aviso ao zelador dizia que as correspondências deveriam ser enviadas para um endereço em Belgrano.

- As caixas. Poucos móveis. Uma mudança. Mais uma vez, sem avisos.

Anotou o endereço e foi até um kiosko na Jorge Newberry. Com muito custo conseguiu ter acesso a uma lista de telefones. Identificou o número pelo endereço e ligou. Do outro lado, uma voz de mulher, seca e ríspida o atendeu.

- Alô.
- Boa tarde, desculpe-me o incômodo. Gostaria de falar com Gabriela, é esse número?
- Sim. Mas ela não está.
- Perdão, com quem eu falo.
- Clara.

Sim. Tudo faria sentido.

- Ela foi buscar a filha na escola. Deve voltar mais tarde. Algum recado.
- Não... obrigado.

Desligou. Caminhou pelas ruas de Colegiales, errando ruas, até chegar em Palermo, sem ter a capacidade articular nenhum pensamento. Apenas detinha-se na certeza de que nunca seria capaz de ter qualquer tipo de controle sobre a realidade que o cercava e ao mesmo tempo o ignorava.

Lembrou que sua mãe nunca lera um livro seu. Estava sempre atarefada e não se interessava por literatura. Pensou em Thais. Mariana. No Rio. Pensou em São Paulo, sua zona total de conforto.
Pensou que seria talvez  o momento de ligar para a ex-namorada, resolver os imbróglios, casar-se, ter filhos, levar uma vida convencional.

No apartamento, conectou-se a internet e no site da TAM percebeu que seria impossível trocar a data da passagem.

Pensou em quantas coisas seria capaz de viver sem conhecer. Quantas vezes seria capaz de conhecer e re-conhecer Gabriela. Quanto valeria para si a experiência indubitável de não ter nenhum poder sobre uma mulher ser incapaz de solicitá-lo.

Ainda sob efeito de fortes dores no estomago e na nuca, com as mãos levemente tremulas, resolveu que 
deveria comprar um assento no vôo da TAM daquele mesmo dia. Tempo viável. Juntou as poucas roupas que havia tirado da mala. Salvou as alterações no arquivo e guardou o pendrive no bolso para evitar qualquer sentimento ruim.

Já na calçada, aguardando o táxi, parecia que nenhuma mulher de Buenos Aires usava um vestido branco.

E sua última lembrança da cidade seriam os verdes campos de Ezeiza.


3 comments:

Anonymous said...

que triste :/

Marcella Fonseca said...

é curioso, eu entendo os finais tristes, mas sentia uma possibilidade de "happy end" ou quem sabe "happy, and.."
de qualquer forma, fica claro que a construção dos personagens foi coerente. o conto é bom.

Ana Gabi said...

"Abandonar o paraíso é a única forma de não esquecê-lo".