25.2.12

vestido branco - parte 4



Guilherme entrou no quarto, seguido de Mariana que tentava entender o que havia acontecido. Sentou-se na cama, trouxe as mãos espalmados ao rosto, respirou fundo e assim permaneceu tentando imaginar o que teria acontecido efetivamente. Ela caminhou devagar pelo quarto, exibindo uma face de preocupação e confusão. Sentou-se ao lado dele.

- O que houve, Guilherme? Fala comigo.
 
Ele sem tirar as mãos do rosto.
 
- Nada, Mariana, apenas um problema muito sério.
- Ei, lindo, eu tô aqui, posso te ajudar em alguma coisa.
 
Por um segundo ele sentiu o rosto queimar. A ansiedade gerada pela situação o colocava em um patamar de irritação acima do normal. Sentiu mais uma vez o suor descer pelo rosto e a nuca doer. Em tom ríspido e agressivo, elevou o tom de voz.
 
- Olha Mariana vou te dizer mais uma vez, não há nada que você possa fazer, ok? Você não deveria estar aqui, então por favor, não me crie mais problemas que eu já tenho.
 
Ela ouviu cada palavra com atenção, levantou-se da cama e sentou no chão, encostando o corpo na parede oposta. Abraçou os joelhos e ficou em silêncio. Apenas observando os movimentos dele.
 
Ele abriu o laptop, conectou-se ao Skype e ao mesmo tempo buscava fazer uma ligação através do aparelho celular. Parecia não obter sucesso. Andava de um lado ao outro do quarto. Demonstrava extrema preocupação. Entrou e saiu do banheiro duas vezes, lavou o rosto. Tirou e colocou o tênis, abriu e fechou janelas. Depois de quase trinta minutos de movimentos frenéticos sentou-se novamente na cama. Observou Mariana. Parecia uma criança assustada, mas que assim como as crianças, mesmo depois de broncas aguardam o perdão e a complacência.
 
- Ei, sai do chão. Senta aqui em cima.
Ela ergue-se sem pestanejar Abriu a bolsa e tirou algo.
- Quer fumar um?
- Sim.
 
Fumaram durante algumas horas. Ele explicou a história por alto. Ela não parecia mais a menina falante e excitada do filme. Ouvia e fazia gestos com a cabeça. Adormeceram ali mesmo. Os dois na cama, cada um virado para um lado.
 
Às oito da manhã Guilherme levantou-se e foi direto para o telefone. Com medo de maiores dificuldades de comunicação usou o telefone do hotel. Conseguiu contato logo de primeiro com a portaria do prédio de Palermo. O porteiro, o mesmo que havia deixado o recado anteriormente não estava, mas foi logo encontrado por rádio e explicou a situação.
 
A encomenda estava retida em uma agencia dos correios em Buenos Aires por um erro de endereço. Porém um imbróglio estava formado. O remetente era o próprio Guilherme. Sendo assim, ele mesmo teria que retirá-lo. Tentou argumentar sobre a possibilidade de enviar uma autorização para que outra pessoa o fizesse. Porém rapidamente foi explicado que em casos de encomendas que contém algo considerado de valor para destino internacional, apenas o remetente poderia retirar. Existia uma possibilidade de terceiros retirarem a encomenda, mas seria um processo relativamente longo e incerto.
 
Guilherme desligou, prometendo ligar novamente. Sentou-se na cadeira que havia junto a mesa do quarto e colocou os olhos ao horizonte através da janela. Sentia-se uma vítima de uma conspiração astral, do júbilo da má sorte. Impossível acreditar que teria que fazer uma viagem apenas para buscar um simples pendrive. Mas tratava-se de um trabalho definido. Clausulas contratuais, inúmeras viagens, jantares, e outros mimos proporcionados por uma editora. Uma quebra significaria um prejuízo material e de prestigio incríveis. Talvez um fim de uma carreira.
 
Resolveu não tomar nenhuma decisão. Acordou Mariana e juntos desceram para tomar café no hotel.
 
Por volta das dez da manhã telefonou para sua agente. Explicou detalhadamente a situação, e perguntou qual seria a possibilidade de atrasar em alguns dias a entrega dos originais. Ouviu um sonoro “não” e muitos conselhos sobre os riscos de isso se perder em algum lugar na bagunça dos correios de Buenos Aires. Por fim, ela deixou claro que gastos com passagem era um mal menor, bastava ele as comprar e seria reembolsado. Que deveria logo buscar o livro.
 
Derrota. Mais uma vez, ir a Buenos Aires.

Entrou no site da TAM e conseguiu comprar passagens para o dia seguinte, com intervalo de volta em dois dias. Era o suficiente para buscar o pendrive e retornar ao Brasil. Fazia isso como se estivesse encomendando a si próprio um castigo.
 
Mariana ainda estava lá. Apenas observava.
 
- Bom, Mariana, eu vou ter que resolver algumas coisas, desculpa não poder mais te dar atenção.
- Não tem problema. Me liga quando voltar?
- Sim.
 
Despediram-se com beijos no rosto.
Ele fez as malas rapidamente. Desceu para almoçar no próprio hotel e passou o resto do dia trancado no quarto.  Tentando domar seus demônios.

Luas, marfins, instrumentos e rosas,
Traços de Dúrer, lampiões austeros,
Nove algarismos e o cambiante zero,
Devo fingir que existem essas coisas.
Fingir que no passado aconteceram
Persépolis e Roma e que uma areia
Subtil mediu a sorte dessa ameia
Que os séculos de ferro desfizeram.
Devo fingir as armas e a pira
Da epopéia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.
Devo fingir que há outros. É mentira.
Só tu existes. Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura.
(O apaixonado - Jorge Luis Borges)



Os verdes campos que cercam Ezeiza. Uma fixação. O calor abafado da cidade. Um pavor. Olhos cansados de noites péssimas tendo que coordenar na mente a confusão de turistas falando diversos idiomas e taxistas disputando sua preferência quase no tapa. Serviço de mala. Folders de turismo. 

Confusão.
 
Se na vinda anterior a sensação era estranha, desta vez era péssima. Não se tratava mais da cidade que ele não gostava. Era a cidade que havia o expelido. Surrado. Mas nada poderia ser pior ou dar errado. O máximo de transtorno seria aturar um longo debate com um funcionário dos correios. Buenos Aires, seu transporte público irritante. Suas pessoas convictas e informadas. Seu cafés decadentes. Seu povo cheio de si.
 
Solicitou o mesmo serviço de táxi. Para ter certeza de que não perderia um minuto, pediu que o levasse direto na agência dos correios localizada na Avenida de Mayo. Não teria sossego enquanto não retira-se o pendrive e retornasse ao Brasil.
 
Em pouco mais de 40 minutos estavam no centro.  O trânsito estava interrompido no trecho adiante. Imaginou que poderia ser um tradicional piquete, corriqueiro na cidade. Notou pelo número que precisaria andar apenas alguns metros e resolveu descer ali mesmo. Pegou a mala e seguiu andando pelas castigadas calçadas.
 
Ao chegar na porta da agência percebeu que a situação tornara-se muito mais grave e surreal. Tratava-se de um piquete na própria agência. Os trabalhadores dos correios ameaçavam uma greve por tempo indeterminado. Tentou trocar algumas palavras com um daqueles que parecia ser a liderança do movimento. O máximo que conseguiu foi entender que a agência não abriria mais naquele dia. Tentou explicar sua situação mas foi engolido pela confusão de pessoas que se amontoavam na porta. 
Repórteres, populares, transeuntes. Calor.
 
Sentiu-se mal.
 
Percebeu que era inútil qualquer diálogo. Escapou da multidão e dirigiu-se a esquina onde era mais fácil pegar outro táxi. Rapidamente conseguiu.
 
- Para Palermo, por favor.
 
A cada minuto do trajeto entre o centro e Palermo sentia-se oprimido, sufocado. Previa que abrir as portas do apartamento seria algo assustador, angustiante. Um poço de lembranças onde a possibilidade de sair ileso e sem maiores ferimentos seria mínimo.
 
Puxou assunto com o taxista sobre o piquete dos correios. O motorista parecia não muito interessado em dar algum tipo de informação relevante. Portenhos.
 
Pagou a corrida e adentrou na portaria do prédio. Deparou-se com um porteiro folguista. Identificou-se e desistiu de qualquer tipo de contato, indo direto ao apartamento.
 
A sensação de abrir o apartamento não pareceu de imediato tão ruim. Estava tudo no mesmo lugar como sempre. A primeira vista era possível até mesmo dimensionar lembranças interessantes. A máquina de café espresso, o forno elétrico. O chapeleiro com espelho do quarto, que remetia a doce e atordoante imagem de Gabriela gozando sozinha e sem a necessidade de maiores ações dele. O Sofá empoeirado.
 
Abriu as janelas, largou a mala no canto da copa, sentou-se à mesa e acendeu um cigarro. Observou que o sol parecia mais forte e claro que nunca. Tinha areia nos olhos e uma incrível sensação de cansaço. Como se acordasse de um intenso sonho e ainda não tivesse total certeza sobre estar acordado.
Sentiu vontade de rir e ao mesmo tempo de chorar.
 
Levantou-se e caminhou em direção ao quarto. Não iria desfazer as malas. Tirou as roupas e as jogou em um canto. Colocou uma camisa e uma calça limpas, calçou novamente o tênis e lembrou-se de colocar lençóis limpos na cama.
 
A tarde não havia terminado e ele estava ali com incertezas plenas.
 
Estava cansado mas sem sono para dormir. Ainda havia muito sol e claridade lá fora.
 
Resolveu que não haveria mal algum ir até El Ateneo comprar alguns livros e tomar um café. Relaxar em um paraíso de livros protegido pelo ar condicionado.
 
A única certeza era de que não passaria pela Santa Fé.
Caminhou pela avenida Honduras observando as pessoas. Abasteceu-se de cigarros e água num Kiosko e fez sinal para um táxi. Em 15 minutos estava na Callao.
 
Sentiu imenso alívio ao entrar na livraria. Lá fora as ruas eram castigadas por um calor de 36°. Seguiu até o café notava um silêncio agradável no lugar. Relativamente vazio. Poucas pessoas andavam entre as estantes. Retirou alguns livros de fotografia e arte, uma biografia de Borges, alguns livros sobre o futebol argentino e uma curiosa publicação que comparava Nestor Kischner com Lula.
 
No café, um grupo de pessoas formavam uma roda e pareciam conversar. Cada uma delas tinha um livro em suas mãos. Ao que tudo indicava mais uma daquelas enfadonhas rodas de conversa sobre literatura onde diletantes expressavam todo seu amor pela produção local. Percebeu que havia uma mesa mais ao canto e resolveu ocupá-la para que pudesse tomar seu café em paz.
 
Seus olhos se alinharam com o de uma mulher que estava bem no meio da roda. Tentou não dobrar os joelhos mediante a sensação de angustia e aflição. Era ela.
Poderia não ter reconhecido Gabriela. Os cabelos mais curtos do que antes. Um corte quase masculino delicadamente ajeitado com uma pomada. As roupas pareciam as mesmas. Um camiseta preta que evidenciavam os ombros e uma bermuda jeans, rasgada. Nos pés um tênis, delicado, algo que chamava a atenção tendo em vista os coturnos de outrora. No pescoço, uma tatuagem nova, com certeza.
 
Coincidência infernal. Guilherme se recusava a acreditar que em pouco mais de um dia na mesma cidade poderia viver tantas situações inusitadas. Ele, mais uma vez, vítima de sua própria curiosidade.

Desviou o olhar. Parou. Colocou os livros na mesa. A estratégia era simples. Fingiria que iria buscar outros livros e iria embora. Girou lentamente o corpo para dar as costas e evitar que fosse reconhecido. 
Armou o primeiro passo. Mas foi interrompido por uma doce voz, que alternava firmeza e candura.
 
- Amigos e amigas, perdoem por interrompê-los, mas acho importante dizer, que está aqui entre nós o escritor brasileiro Guilherme Lopes. Acho que seria uma grande honra tê-lo aqui nessa conversa, sendo assim, peço licença a vocês para convidá-lo a se sentar conosco e participar. Guilherme?
 
Quando criança Guilherme sentia um grande pavor na sua vida. Adorava escrever redações nas aulas de português. Mas a sensação de maior pavor que o habitava era de ler suas redações aos colegas de sala. Resguardava-se na opinião de autoridade da professora para ganhar nota dez. Mas sentia-se frustrado quando os rudes colegas não achavam graça no que ele escrevia, principalmente as meninas. Quando era obrigado a ler, sentia-se mal. Os olhos pesavam, o maxilar travava. A nuca doía. Suava. O pânico de estar colocado em situações que odiava. O tempo lhe ensinou que a forma mais fácil de lidar com isso, quando não se resolve muito bem os problemas era agir com arrogância e desprezo. Foi o que pensou. 

Faria um sinal de negativo com os dedos, uma expressão de agradecido, e pediria licença por ter compromissos ainda naquela tarde.  Mas a roda inteira o observava, alguns sorriam. A vontade de deixar que a presença de Gabriela o destruísse contou. Sentimentos dúbios.
Caminhou em direção a roda e sentou-se a esquerda dela. A cumprimentou com os olhos, e ela retribuiu com um sorriso. Reparou que sua mão estava entrelaçada com a da mulher que estava a sua direita. Essa por sua vez, após Guilherme se acomodar, parecia voltar a posição inicial e acomodou a cabeça no ombro de Gabriela.
 
Um senhor gordo e de bigode reiniciou suas considerações. E a hora mais longa da vida de Guilherme começou.

2 comments:

Gladston Neiva said...

guilherme só se fode. to começando a ter pena dele...rs

manda mais pelo amor de deus

Anonymous said...

Não me destrua a personagem gabriela ela parte importante dessa trama rsss