16.2.12

vestido branco - parte 3 (+18)


Desde que descera no galeão, voltando de Bueno Aires, ele não pensou em voltar a são Paulo. Hospedou-se em um hotel de Copacabana e resolveu aproveitar alguns dias que sobravam antes da entrega do material final do livro. O primeiro dia, passou inteiro dormindo sob o efeito de rivotril. Acreditava precisar de um sono desse porte. Trancou-se no quarto do hotel e por lá ficou, quase 22 horas  seguidas, levantando-se apenas para solicitar o serviço de quarto e ir ao banheiro. Assistiu TV, tomou um banho de hidromassagem. Voltou a cama. Controlou os pensamentos da pior espécie. Domou as lembranças da cidade portenha. Pensou em Gabriela. Mais de uma vez. A boca, os pés, os coturnos. Seu jeito de dançar e de olhar. Mas fazia questão de evitar pensar. Se pegou sonhando, de forma intensa: um quarto escuro, onde ele não conseguia acender a luz, parecia não poder abrir os olhos. Tonto, não conseguia se erguer. Sua aflição era interrompida por uma voz doce e sensual:

- hola, Chico!

Quando pensava que havia um sinal de vida, percebia que estava amarrado na cama. Em desespero, acordou do sono. Ou pesadelo.
No primeiro dia desceu a Santa Clara em direção a Atlântica. Quis ver o mar. Passeou pela orla por algumas horas, na intenção de encontrar algo no horizonte. Era como se o mundo, estéril, fosse incapaz de dar respostas naturais a ele. Seguiu em frente, subiu a Bolivar até a livraria de mesmo nome. Hesitou na possibilidade de perguntar pelo seu último livro ao atendente. Fazia isso no início da carreira e se sentia um babaca. Mas era mais forte que ele. Queria ter certeza de que era  um escritor com uma boa editora, presente em todas as livrarias. Arrefeceu.
Sentou-se e pediu um espresso. Aproveitou para ler o jornal do dia. Passar os olhos, já que não se interessava por nada daquilo. Quando abaixou o jornal para tomar um gole do café, percebeu que era observado por um jovem menina, de pele clara, cabelos curtos, magra. Mas atraente. Desviou o olhar. Ela veio em sua direção.
- Você é o Guilherme, não é?
- Sim, sou eu.
- Eu adoro as coisas que você escreve. Li teus livros. Acompanho a coluna na revista também.
Reconhecimento. Mimo. Volúpia. Estou em casa novamente.
- Obrigado, fico feliz.
Ela, diante a reação dele, sentou-se sem ser convidada, e fez um gesto para a garçonete solicitando um café.
- Olha, eu sou estudante de cinema. Hoje vai ter uma premiere de um curta que fizemos, aqui perto, no Roxy. Por que você não vai até lá? Seria o máximo!
Ele não tinha nada a perder. Gostava do estilo PUC, baixo-Gávea, daquela menina.
- Ok, feito!
- Maravilha, deixa eu te dar o convite.
- E qual é o teu nome?
-Mariana.

Voltou ao hotel, caminhando pela Nossa Senhora de Copacabana. Reparava no comportamento das pessoas que sobreviviam naquele pedaço de Rio de Janeiro. Parou em uma padaria e comprou seis maços de Marlboro para garantir tranqüilidade. Mais do que nunca estava entregue ao tabagismo.
Tomou um banho rápido, pegou as roupas que haviam voltado da lavanderia. Escolheu um jeans, uma camisa pólo de listas horizontais. Ajeitou o cabelo com as mãos, calçou um par de tênis.  Desceu em direção ao saguão do hotel e pediu um táxi.
O cinema estava cheio de jovens estudantes com perfil parecido. Descolados, hipsters, indies. Ele se sentia um pouco descolado. Ainda faltavam alguns minutos para que pudesse começar a sessão. Resolveu fumar mais uma vez na calçada. Entre um trago e outro foi interpelado por Mariana.
- Olá, que bom que você veio...
- Obrigado mais uma vez pelo convite...
Os minutos que se seguiram foram do mais complexo cinema experimental e construtivista. Cortes abruptos, planos sequência inesperados, áudio confuso, falas improvisadas, alguma nudez sem maior sentido. Vinte e três minutos de candura adolescente estudantil em forma de película. Ele achou tudo um saco, mas buscava mostra um semblante interessado, era seu papel. Ao final, aplausos e sorrisos daqueles jovens, que provavelmente haviam dedicado boa parte do semestre a realizar aquele projeto de uma disciplina qualquer da faculdade.
Mariana demonstrava extrema felicidade e excitação. Havia sido a produtora do curta. Atropelou Guilherme com uma série de histórias que se emendavam em perguntas e troca de impressões, mas que rendiam pouco diálogo. Ele apenas conseguia se concentrar nos olhos dela.
Belos olhos aliás, por que uma menina assim tão bonita não prefere literatura?
- Ei, a gente queria beber alguma coisa, por aqui mesmo na zona sul, para comemorar a finalização do projeto, topa vir conosco?
- Bem, eu...
- Ah, por favor, vai, a gente mal conversou...
- ok, ok...
Entraram no Táxi com mais dois amigos e foram em direção Leblon. Subiram a Dias Ferreira e desceram em frente ao Esch café. Escolha inusitada. Formaram uma mesa de seis pessoas, já que dois amigos já os esperavam por lá. O que se seguiu foi uma noite de falação incontida sobre cinema e experiências audiovisuais. Depois de algumas horas, Carol, amiga de Mariana tocou no assunto literatura, fazendo Guilherme falar da incrível experiência das palavras. Ele, sem paciência para um diálogo, mas treinado no pastiche, discorreu sobre os dilemas do escritor brasileiro contemporâneo, usou seus mais afiados jargões da literatour do momento. As pessoas o ouviam e balançavam a cabeça, como se concordassem com toda aquela besteira que era dita.
Ao final, pagaram a conta. Bebidas, algumas entradas. E uma sensação estranha, de uma noite razoavelmente vazia.
Na saída, Mariana o abraçou e agradeceu pela presença.
- Você fica no Rio por enquanto?
- Sim, mais alguns dias.
- Nos vemos novamente?
- Bom, devo ficar no hotel terminando de escrever algumas coisas.
Procurou algo nos bolsos e encontrou a nota da lavanderia.
- Toma, qualquer coisa me procura. Estou no quarto 1601.
Beijaram-se no rosto. E cada um foi para seu destino.

Para fugir de eventuais pesadelos, ele dobrou a dose do rivotril. Não sabe se na noite anterior sofreu com eles. Mas a sensação de corpo mole e ressaca de remédio era tão grande que era incapaz de fazer essa associação.
Acordou, pediu o café no quarto. Lavou o rosto, vestiu uma camisa, arrastou a mesa para mais perto da janela e ligou o laptop. Abriu a a mala e retirou uma pequena impressora que usava para suas viagens, conectou no computador. Retirou o HD externo da bagagem de mão e também o plugou. Abriu sua pasta [criação] e dentro dela clicou em [novos]. Reparou que o texto não estava lá. Lembrou-se que havia passado o livro para um pendrive novo, comprado no dutyfree do Galeão. Abriu a mala e procurou no compartimento interno. Nada. Jogou todo conteúdo da mesma no chão e separou roupa por roupa, bolso por bolso. Fez o mesmo com a bagagem de mão. Nada. Sentiu um frio subir pela espinha. Gotas de suor gelado desceram pelas têmporas. Conectou-se a rede wireless do hotel e acessou seu email pessoal e o da editora. Não havia backup. A única possibilidade era ter esquecido o pendrive no apartamento de Palermo. Sentiu uma forte dor na nuca que descia para o estomago. Foi ao banheiro, lavou o rosto e tentou repensar todo trajeto na hora de ir embora.
Abriu sua agenda no laptop e usou os últimos créditos em ligação do Skype para ligar para a portaria do prédio em Palermo. Iniciou uma conversa aflita com o porteiro. Ele tentava explicar o que havia acontecido, o porteiro tentava explicar que há muitos anos não tinha cópia da chave. Porém conseguiu o telefone da faxineira que ia quinzenalmente ao apartamento cuidar das coisas.
Conseguiu contato. Foram minutos seguidos de atropelos em espanhol. Ela com um forte sotaque paraguaio. Ele impaciente e aflito. Ao fim, ela reconheceu que encontrou algo semelhante ao que ele descrevia. Combinaram que ela deveria colocar o pendrive devidamente protegido em um envelope e enviá-lo através dos correios para o hotel que ele estava. Soletrou letra por letra para não haver erro no campo do destinatário. Ela pediu apenas que gostaria de colocar o próprio Guilherme como remetente e o endereço do apartamento de Palermo pois não queria documentar nada em seu nome, devido a problemas que o marido enfrentava na justiça argentina. Feito.
Ele ligou ao fim da tarde para confirmar o envio e respirou aliviado. Percebeu que por causa dessa situação havia ficado quase o dia todo trancado no quarto, de cuecas e sem comer direito. Resolveu que iria sair a noite, para relaxar. Sua estadia no Rio poderia se estender, agora era refém do correio nacional da argentina. 
A possibilidade mais atraente daquela noite era uma tradicional festa do Rio. O bailinho, no MAM. Direcionou-se para lá, depois de fazer contato com um dos poucos amigos que tinha no Rio, o também escritor Lúcio Gonzales. Lucio era tradutor e fazia parte do quadro de uma importante editora carioca. Era alguns anos mais velhos que Guilherme e tinha ganhado destaque por uma adaptação de sua obra principal para o cinema. Era um sujeito calmo, bonito e famoso. Uma bela companhia para quem buscava algum tipo de magnetismo em uma noite carioca.
Se encontraram em Botafogo no apartamento de Lúcio, na São Clemente e foram juntos para a festa no carro dele. Conversaram sobre a vida, o terror das editoras, a falta de inspiração e rumo de suas obras. Um papo sincero. Mas nenhuma palavra sobre Gabriela. Guilherme achava que nunca estaria pronto para falar sobre isso. Principalmente por se tratar de algo que não poderia ser explicado. A frustração do encontros e desencontros com a portenha se somavam a sensação de uma péssima recepção da cidade.
 Sentia um ar diferente ao cruzar o Aterro do Flamengo. Como se estivesse em casa. Via as luzes e gostava. Ainda estava um pouco tenso por causa da chance quase efetiva de perder o livro que devia a editora. Preferiu não contar as histórias vividas em Buenos Aires. Não poderia jamais compartilhar suas fraquezas com alguém.
O Bailinho parecia ser a expressão máxima do carioquismo descolado. Artistas de todos os tipos, celebridades, estudantes, figuras das mais diversas cruzavam o local e dançavam. Os dois encontraram um canto  e se acomodaram. Eram reconhecidos ali, principalmente por estudantes de Letras que circulavam no lugar. O som alto não permitia muita interação. Mas concretizava o que Guilherme queria. Ser tratado como escritor. Mimado. Paparicado. Pediu uma vodka dupla. Lucio não bebeu, temia as famigeradas blitz da operação Lei Seca. Conversaram um pouco mais até que o amigo foi interpelado por um batalhão de groupies-literárias com as melhores(ou piores) intenções possíveis. Deixou o amigo a vontade e foi dar uma volta pelo local. Não sem antes pedir mais uma vodka dupla.
Sentia-se bem ao ser assediado. Duas meninas vieram com seus smartphones e pediram para que ele se deixasse fotografar com elas. Um cara de camisa xadrez e óculos de aro grosso o cumprimentou e tentou dizer coisas sobre seu trabalho. Quase impossível compreender.
Na pista encontrou com alguns conhecidos, brindaram seu retorno ao Rio e dançaram.
Deparou-se próximo aos banheiros com uma linda morena, de cabelos longos, usando um vestido preto, justo e relativamente curto. Salto alto. Buscou seu olhar, mas ele nitidamente o desviava. Ela tinha nas mãos um mojito. Foi em sua direção, aproveitou que já estava relativamente alegre pelas vodkas.
-  Onde a senhorita andou por esse tempo todo? Eu nunca vi você...
Ela gargalhou com vontade, desceu os olhos, constituiu um semblante sério ou irônico. E falou pausadamente:
- Talvez você não tenha percebido onde eu estava por que estava ocupado demais, vomitando no banco do carona do meu carro.
Sim, é ela. A menina da Flip. Meu deus,como eu pude esquecer. Como eu pude dar esse fora. Que diabos é essa conjunção astral que me leva a essa mulher de novo.
- É, então, tudo bem com você...
- Thaís.
-Sim, eu sabia seu nome.
-Imaginei que sim, Guilherme.
- Olha, eu nunca pude me explicar direito. Eu estava um pouco eufórico, exagerei na bebida e acabei...
- Ok, quer fumar um?
Por que não? Essa festa já deu o que tinha que dar, não é mesmo? E ninguém vomita por causa de maconha.

- Pode ser...

Saíram no carro de Thais. Guilherme ainda não conseguia entender bem como poderia ter dado tal vexame diante uma mulher tão linda e aparentemente tão resignada. Reparou mais uma vez em seu tom de pele, tipicamente bronzeado pelo sol. Parecia se exercitar, tinha belas pernas. Uma mulher extremamente vaidosa.
Cruzaram a Infante Dom Henrique com um baseado respeitável aceso. Enquanto ela tragava, ele procurava no Twitter pelo Iphone as possíveis blitz que poderiam estragar tudo. Aparentemente, reinava tranqüilidade na região. Desbravaram alguns quilômetros de asfalto, com o carro perfumado de erva boa. Conversavam sobre amenidades. Ela parecia tranqüila, sem maiores rancores em relação ao incidente de Parati. Sorria enquanto dirigia com uma única mão. A outra acariciava o próprio cabelo. Nunca havia percebido como era linda.
Ela o olhou fixamente, com um sorriso leve. Tênue.
- Afim de terminar a ponta lá em casa?
- Seria ótimo.
Subiram a Pinheiro Machado em direção a Laranjeiras. Ele ainda teve tempo de enviar um sms para Lucio explicando seu sumiço. Chegaram ao apartamento da General Glicério.
O dois quartos era amplo. Cuidadosamente decorado. Um dos quartos era ocupado por uma espécie de escritório onde Thais trabalhava em seus projetos de publicidade. Ficaram na sala. Ela ligou o Ipod em um player e levemente o som de Miles Davis tomou conta do ambiente. Ela acendeu a ponta e fumaram o que restava, rindo de coisas banais.
- Quer uma taça de vinho?
- Sim, adoraria.
Ela levantou do sofá, jogou de lado os sapatos. Caminhou levemente até a copa. Abaixou-se no balcão que a separava da cozinha e colocou sobre ele duas taças. A garrafa estava logo ao lado. Lentamente serviu. Ele acompanhava cada gesto com atenção. Ela ergueu a face, sentia que ele a comia com os olhos. Sorriu. Caminhou de volta ao sofá, a franja caía sobre os olhos.
- Nunca terminei de ler seu livro.
- Não perdeu nada.
Ela gargalhou novamente. Bebeu um pouco do vinho. Tocou os cabelos dele.
- Então devo terminar de fazer outra coisa que ainda não terminei...
Antes que ele pudesse falar ela levantou. Tirou o vestido por cima e jogou os cabelos para trás. Sem sutiã, usava uma calcinha pequena. Sentou-se sobre ele, de frente, e o beijou. Ele arrancou rapidamente a camisa e a prensou forte contra seu próprio corpo, ergueu-se com as pernas entrelaçadas e a deitou no sofá. Arrancou sua calcinha com uma só mão e a chupou. Ela lhe deu a camisinha. Fizeram um sexo básico, suficientemente bom para gozarem juntos.
Por volta das três da manhã atravessou o saguão do hotel. Ao se aproximar da recepção, percebeu que uma menina clara e bonita estava no sofá, de pernas cruzadas. Jeans e all-star.

-  Mariana?
- Não ficou feliz de me ver?
- Não é isso, é que...
- Você disse que eu poderia te procurar...
- Sim, não tem problema. Bom, vamos subir até o quarto, pode ser? Conversamos melhor lá, se importa?
- Não.
O recepcionista pegou as chaves. Junto delas havia uma post-it.
- Um segundo, senhor Guilherme.
-Ok.
- Há um recado aqui para o senhor. Alguém ligou se identificando como “zelador do apartamento de Palermo”. O nosso interprete foi quem precisou atender o telefonema. Diz aqui que é para o senhor entrar em contato urgente “pois uma correspondência que deveria ter sido enviada para o senhor foi retida em uma agência dos correios de Buenos Aires por problemas no endereçamento”.
Novamente a dor descia da espinha e percorria o estômago.
Como assim? O que aquela estúpida fez de errado?
Pegou o bilhete da mão do recepcionista e saiu em direção ao elevador sem falar anda. Mariana veio atrás.

Subiram até o 1601. Mudos.

3 comments:

Luana Carvalho said...

como um personagem é capaz de ser tão estrangeiro em dois lugares diferentes? e o poior, ele nõ percebe que está em dissidência de si mesmo. excelente. espero a sequência.

Anonymous said...

maravilha. esse guilherme é tão diferente do tiago

Kadu Mauad said...

Isso aqui não é conto nem aqui nem lá na China. E tem "Cordilheira" no pedaço.

Tá muito bom. Agora, meu velho, espero a continuação. Quero ver onde que isso vai dar.

bjs, parceiro.
kd