29.3.11

Pioneiros - I


A esverdejante folha aponta no  horizonte, e a gotícula faz prisma de cores – é o sol que volta – tangente no globo ocular, mas nem assim desvio o olhar. Pescoço dolorido em cavalgada mira a folha, reta, sempre, obstinado, em busca do destino incerto que me acolhe, a gota escorre – feito lágrima ou suor na testa – galopante em riba de arreio, cravo forte espora em bucho de cavalo doido para chegar antes que a lágrima escorra. Eu sempre disse a Maria Rosa que de cavalo não tenho pena – mas recompenso a água e capim, de preferência daqueles que nascem no Serro ou na Canastra, que dão de beber em teta de vaca leite gordo, nutre filho de senhor, quando roubado alivia fome de Zé-ninguém como eu. E já corriam os oitocentos. Sempre que assim penso, faço reverência ao consagrado Imperador, Às vezes puxo forte o arreio para que Sem-Mortes, meu cavalo, empine, e eu grite, “Viva o Brasil” com a garrucha velha que me acompanha em coldre velho, que ganhei nas andanças por Diamantina, de Maria Rosa. Era sempre oração do dia, para que não usasse a garrucha velha. “Garrucha falha, pólvora molha, mulher de Deus, mas na bainha trago faca de ponta, e essa a preta velha de Vila Rica, na encosta da serra, em casebre abandonado e casa mal alumiada garantiu que nunca falta à mão”. Maria Rosa se benzia e ordenava com as mãos espalhando reza que não me misturasse com as lendas dos pretos que segundo ela, bebiam cachaça e fumavam rolo em nome de santos de mau agouro.
            - Corre, Sem-Morte, pangaré de araque, fél-da-zunha, que a gota vai cair e eu quero chegar!
            De antemão antecipo ao senhor que não tinha gota, nem folha esverdejante. É prosa de peão que de vez em sempre assunta com a imaginação. Mas havia a sombra do sol atrasado que não bastando tardar, vinha de indelicadeza com moleira de andante, gente perdida, homem sem dono, filho sem pai, troço de treva, como eu. Arreia de pé, enrosca galho, tapa na fuça de Sem-Morte. Bico no cantil. Suadeira na lomba, peso da mochila de couro. Bezerro que eu mesmo matei.
            A beiragem do Paraybuna era feia de dar dó. Rio lamacento, água escura, sinuoso que nem lombo de bicho gordo, sem roçado, mas me benzi agardecendo em palavra de improviso ao Senhor do céu – reza de peão não tem bordado – faz gesto brusco e instrui palavra de boca meio fechado. Se vossa senhoria me entende, aprendi a rezar em lombo de mula, as letras nunca juntei, e na igreja, seu vigário balofo nunca permitiu que eu entrasse, desde que roubei moeda na caixinha da santa. Mas quando há fome, não há pecado, e se insiste o padre-santo, eu me entendo com o diabo, nem que seja em briga de faca.

            E lá adiante aparece um morto de fome como eu. Olhos esbugalhados, cara amarela, roupa maltrapilha, daria dó – se o estrupiado não empunhasse um facão de tucum de dar gosto de tão novinho e um rosário de madre-pérola, que já intuí em minha mente brejeira ser pilhado de homem de posse.
            - Vai pr’onde, homem de Deus?
            - Não vou. Já cheguei.
            O estropiado riu de canto feito tinhoso. O senhor saiba, que só não abri um bucho em homenagem aos urubus por que tinha tempo que me decidi por ser homem de paz nessas Gerais.
            - Veio de onde, condenado?
            - Vim das bandas da capital. Mas ouro não há mais, não sou homem de perder viagem, apeio aqui e faço brotar desse chão o que preciso pra viver.
            O maldito dessa vez ria era de boca inteira, e eu rogava a Santa Virgem que me desse paciência e tranqüilidade.
            - Terra não devia ter dono disse o Santíssimo e quem sou eu pra dizer estória de contrário. Fica em paz e na sorte, por que Deus aqui nunca esteve, e o Diabo se veio já pulou fora.
            E foi arrastando esqueleto velho de volta ao pobre vilarejo.
            A notícia é que a fazenda do outro lado é de homem de sobrenome graúdo, e presença gorda nas políticas dessas bandas. O que o homem planta com fé, nem coronel, nem senhor de escravo arranca. Se planto os pés na margem desse Paraybuna lamaceiro ninguém me tira. Cavo e escavo solidão até as ferramentas que Deus deu se transformarem em toco de pau, e arbitrariedade, meu senhor, eu não tolero. Puxo garrucha, quando pólvora molhar a faca de ponta não falha. E se o plantel de escravos ganhar liberdade como querem os doutores da capital, faço voto e presença de invasão nas terras desse sei-lá-quem com sobrenome. E tenho dito. É palavra de peão.

28.3.11

Eco Performances Poéticas no Grito Rock

Estivemos ontem no Cultural Bar, participando da primeira edição do festival internacional Grito Rock (http://gritorock.com.br/).

Esse festival corre toda a América Latina, reunindo bandas do circuito independente. Em Juiz de Fora ele foi promovido pelo Coletivo Sem Paredes (http://coletivosemparedes.wordpress.com/) que tem feito um belo trabalho na cidade em prol da arte e da cultura. Eu e Luiz Fernando Priamo fizemos leituras diversas enquanto nosso amestro Pedro Paiva atacava nos discos, propiciando uma bela trilha sonora. Desde já, agradecemos a todos e todas que prestigiaram, bem como toda galera da casa, que deu uma força, Juliana, Helô, e a Virgínia do Sem Paredes que fez questão da nossa participação no evento.

O registro é da fotografa Thais Thomaz. Ficou incrível, né? Conheça o trabalho dela: http://www.thaisthomaz.com/ 

E caso quiser reproduzir essas fotos, não esqueça de dar o crédito a ela.










19.3.11

Da proibição de festas e outras formas de criminalizar a juventude



Mais uma vez assistimos um velho filme em Juiz de Fora. A prefeitura, sob o argumento de um parecer judicial, resolve impedir a realização de uma festa Rave neste sábado ma cidade.

Antes de qualquer coisa, deixo claro que conheço esse tipo de festa de perto, apesar de não ser um frequentador delas.

Chamo de velho filme por que pouco tempo atrás vimos a proibição de bailes funk no centro da cidade justificadas pela possível violência que as festas poderiam trazer. As raves seriam antros de drogas, e os bailes de violência.

Muitas proibições aconteceram, muita água passou por baixo da ponte e nada mudou. É óbvio que essas medidas nunca surtiram efeito.

A prefeitura de Juiz de Fora foi rápída no gatilho para proibir a festa. Mas tem sido bem lenta na promoção de políticas públicas que possam ajudar na conscientização e no combate às drogas. Estou errado? Alguém conhece um projeto efetivo na cidade com esse tema? Alguma parceria entre justiça e Ministério Público? Se houver, ficarei feliz em ser corrigido.

O que acontece é que infelizmente existe um caminho, com o perdão da palavra, preguiçoso, sempre utilizado. è mais fácil proibir do que compreender o que e fato representam essas festas. É muito mais cômodo a repressão do que a fiscalização e a proteção aos jovens que na sua maioria esmagadora, vão nessas festas para se divertir. Ou será que já esquecemos que lazer é um direito fundamental da juventude?

No ano passado, pessoas foram presas portando drogas na estrada que dava acesso a festa. parabéns a PM, que fez seu trabalho. É isso que esperamos da polícia. Porém isso não pode servir como justificativa para a proibição da festa. Quantas vezes, torcedores de futebol não são detidos antes de ir ao estádio com armas e similares? Vamos proibir o futebol por causa disso? Não existe o consumo de drogas em outros espaços?

Lamento crer que isso ocorre, fundamentalmente pelo fato de que o poder público não conhece a juventude e seus anseios. E como a juventude muitas vezes não representa um grupo forte e organizado de poder, acaba se tornando vítima de arbitrariedades.

Esperamos que haja mobilização para tirar esse debate dessas trevas, de preconceito e desinformação, para que a juventude possa ter seu direito pleno de se divertir, nos espaços que escolhe.

12.3.11

De onde eu sou

São João da Mata - vista aérea

De onde eu sou, eu sei, apesar de ter vindo de muitos lugares. parece a sina de versador com a sacola nas costas. papel, caneta, coração na ponta do lápis.

cresci na barriga de uma mãe amorosa no sul das Minas dos Matos Gerais. A cidadezinha de São João da Mata, terra de índios Abatingueras, em constante litígio com bandeirantes paulistas, friagem de doer os ossos nas noites de inverno. Mas frio nenhum era páreo pras portas abertas, salas cheias de gente, onde o limite entre vizinhança e família nunca se fez certo, graças a boa hospitalidade mineira. Casa cheia, cozinha esquentando o resto do lar. Panelas cantando, tábuas batucando sob facas que cortam legumes e verduras, água de bica que cai na panela, ferve, cheira, apimenta, prova, canta, ri, chora, relembra. O mundo é cozinha boa.

Mas São João da Mata não tinha hospital. Vai pai, vai mãe, corre pr'o moleque nascer em Pouso Alegre, é logo ali. Passa avoando por Machado, cuidado com o radar. Balança as estrturas do Fiat147 zero bala, seu Oswaldo, que o moleque quer sair pra viver a vida. Nasce, e volta. Por que ele quer mesmo é ser sãojoanense, acordar e sentir cheiro de milho cozido, cural,paçoca, leitoa. Ouvir o Seu melado, velho sábio entoar canções ao violão, logo ali na sala. Corre, minha gente, que a família já pegou a estrada pra ver o molecote que nasceu.

- Cadê Anacharsis, Vadico?
-Ah, Dona Lezy, ele foi almoçar na casa do vizinho, mas quando estava voltando o folião convidou pra tomar uma pinga na parada da folia e ele topou. Abriu o apetite e o prefeito chamou pra almoçar na casa dele. Convite do prefeito, não se recusa.

Azar da leitoa que foi pra panela. E Vovô Rattes fazia sucesso nas ruas da pequena cidade, de casa em casa, não negava convite.

Tio Iriê quando chegou mal entrou em casa. Pai interpelou e foram afogar saudade em copo de gelada. Quatro horas depois os amigos retornam a residência, embebidos em felicidade. Eis que o Iriê saca da mala um jogo de vareta e inicia o desafio.

-O que é esse barulho? é chuva batendo na janela, Waninha?
-Nada, querido. É que essa hora a besourada sai da mata e bate na janela, preocupa não.

Zé Guto, meu padrinho, tio mais novo sente em São João da Mata sua grande liberdade. Com 18 anos, acompanhado do primo Wilsomar, que Deus o tenha, vai curtir os forrós e cortejar as mocinhas, voltar de madruga em estrada de terra, escura, com luz-pequena de pirilampo, quando muito lua cheia abençoada.

- Ô Wilsomar, você viu que eu peguei na mão daquela menina?
-Pois é, elas nem queriam que a gente fosse embora...

Um dia voltamos pra Juiz de Fora, onde pai e mãe viveram desde cedo. Eu nem era dono de mim. Mas tenho certeza que já tinha decidido que era juizforano do miolo, até o talo.

De São João da Mata ficaram as lembranças da casa ampla, da samambaia, da cozinha, das brincadeiras da sala, dos carinhos da ajudante Sandra, que cuidava como se eu fosse filho, do burburinho da rua onde crianças brincavam, da Folia de Reis que entrava em casa e fazia oração. Da Congada que passava e dos carreiros, que davam som a rua, com seus carros de boi.

Mas eu já havia decidido que era súdito da Princesa de Minas, Vam'bora que é hora.

Na Princesa de Minas, Juiz de Fora, Santo Antonio do Paraybuna, Manchester Mineira, era vida nova, vida velha, outros santos, outras festas.

Entra no carro com o Vô Rattes, vai no açougue. Hoje tem churrasco. Final de semana é dia de ir pra cidade alta. Brincar com primos, brincar de serra. Reviver o frio. Brincar com os primos e primas, pipa-papagio, casa de árvore, chão de terra.

E por ocasião de trabalho da Dona Wânia o molecote vai viver boa parte de suas horas do dia no Mariano procópio, brejeando o Paraibuna, margeando córrego, estourando dedo em rua calçada de pedra. Estudando em escolinha, ali mesmo. O molecote se sagra moleque de verdade. Da roça ao subúrbio, do matão à várzea. Cruza a avenida Rio Branco, vai almoçar na Vó Penha todo dia, ser cuidado pelas tias, e no final do dia ganhar beijo e abraço de mãe.

-Mãe, posso brincar no terreiro?
-Mas meu filho, eu sou sua vó, a sua mãe é a Wânia.
-Eu sei, vó. Mas é por que eu tenho duas mães.

E assim foi, e sempre será.

Eu vim de um monte de lugares. Pude até escolher de onde eu vim. Cabe a mim viver e morrer de amor por esses pedaços de mim, espalhados pela geografia intensa das Minas Gerais.